Não tenho necessidade dessa hipótese.
Laplace
Toda intervenção sobrenatural é uma violação da descendência comum.
Gert Korthof
A grande controvérsia da cultura contemporânea gira em torno do caráter materialista da evolução darwiniana. Na tentativa de acomodar as crenças religiosas ao conhecimento científico, muitos aderem à ideia de um processo evolutivo guiado por Deus. A compatibilidade entre teísmo e evolucionismo é defendida, por exemplo, pelo teólogo Alvin Plantinga:
Deus poderia ter alcançado os resultados que ele desejava fazendo com que as mutações certas surgissem nos momentos certos, deixando a seleção natural fazer o resto. Outra possibilidade: Thomas Huxley [...] sugeriu que Deus poderia ter arranjado as coisas no início de modo que as mutações certas surgissem, no futuro, nos momentos certos, levando aos resultados que ele desejou. (1)
Em suma, independentemente do método de criação empregado pelo designer inteligente (com intervenções sobrenaturais feitas no início ou ao longo do processo evolutivo), Plantinga defende a compatibilidade entre o evolucionismo e a existência de mutações genéticas dirigidas. Tornou-se vergonhoso e fora de moda negar o transformismo e a tese da descendência comum de todas as espécies; e então os ânimos religiosos buscam harmonizá-los com a velha doutrina criacionista.
Além disso, numa manobra desonesta, alguns acomodacionistas costumam distorcer os resultados das pesquisas de opinião, por meio do obscurecimento da distinção entre a evolução teísta e a evolução científica. Resulta daí a falsa impressão de que grande parte da população adere ao conceito científico de evolução. Na verdade, uma pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto Gallup revelou que 32% dos americanos admitem que a evolução foi guiada por Deus; 15% aceitam a evolução materialista; e 46% alegam que a evolução não ocorreu. (2) Logo, apenas 15% dos americanos aderem ao conceito científico de evolução. O resultado não surpreende. Aceitar o evolucionismo materialista equivale a rejeitar a ideia de um supervisor cósmico: algo incompatível com a proclividade religiosa da maior parte da população.
Na mesma linha de Plantinga, o arcebispo de Viena, Christoph Schönborn, teve a honestidade de declarar essa incompatibilidade no artigo Encontrando o design na natureza, publicado em 7 de julho de 2005 no The New York Times:
A evolução no sentido de ancestralidade comum pode ser verdadeira, mas a evolução no sentido neodarwiniano – um processo não guiado e não planejado de variação aleatória e de seleção natural – não é. Qualquer sistema de pensamento que nega ou procura fornecer uma explicação natural para a esmagadora evidência de design na biologia é ideologia, e não ciência. (3)
Assim, nada mais bizarra que a atitude de Stephen Jay Gould, o qual pulou de alegria quando soube do ambíguo endosso do Papa João Paulo II à teoria da evolução, proferido em 1996. (4) Schönborn explica que em nenhum momento João Paulo chegou a admitir a possibilidade de um processo evolutivo em conformidade com o conceito darwiniano, e cita a seguinte declaração do sumo pontífice, enunciada em 1985: “É claro que a verdade da fé sobre a criação é radicalmente oposta às teorias da filosofia materialista. Estas veem o cosmo como o resultado de uma evolução da matéria redutível ao puro acaso e à necessidade”.
É preciso esclarecer de uma vez por todas que a evolução teísta não corresponde ao processo materialista estudado pelos cientistas e ensinado nas escolas. O fato é que, de acordo com a biologia moderna, o ser humano e as demais espécies foram gerados por uma combinação de mutações aleatórias e de seleção natural. A evolução darwiniana não é um processo guiado. Portanto, todas as espécies são resultado do acaso, e não do propósito divino. Este ensinamento da ciência está em absoluta contradição com todas as formas de teísmo. Com efeito, um olhar filosófico e imparcial logo discerne que o evolucionismo científico só é compatível com o sistema deísta (segundo o qual Deus é a causa primeira que estabelece as leis da física e depois abandona a natureza à sua própria sorte. O teísmo, por outro lado, sustenta a existência de um Deus que interfere no curso dos fenômenos naturais, como o Deus da Bíblia). No dizer de Johnson,
Quando darwinistas dizem que sua teoria não nega “a existência de Deus” e alegam não dizer nada sobre “religião”, eles normalmente querem dizer que estão dispostos a permitir o deísmo como uma possibilidade para pessoas que não estão dispostas a rejeitar completamente a existência de Deus. Muitos naturalistas evolucionários não veem prejuízo em fazer essa concessão, pois um Deus que confina sua atividade ao início remoto do tempo é insignificante para as vidas humanas. (5)
O exemplo de Darwin é paradigmático no que respeita à relação entre o evolucionismo científico e a religião. O pai da teoria moderna da evolução não foi um ateu, mas um pensador de tendência agnóstica (particularmente na velhice). (6) Entretanto, tal agnosticismo dizia respeito apenas à existência de um criador do Universo e das leis naturais, e não à existência de um criador dos organismos. Podemos dizer, portanto, que o agnosticismo de Darwin era relativo à hipótese deísta, e não à hipótese teísta. É notório que A origem das espécies atribui o fenômeno das adaptações orgânicas à estrita operação das causas segundas ou naturais:
Autores da mais elevada eminência parecem estar completamente satisfeitos com a visão de que cada espécie foi criada independentemente. A meu ver, combina melhor com o que nós sabemos das leis impressas na matéria pelo Criador, que a produção e a extinção dos habitantes passados e presentes do globo sejam resultantes de causas secundárias, como aquelas que determinam o nascimento e a morte do indivíduo. (7)
Em outras palavras, Deus poderia ser o originador da natureza como um todo, ou seja, do conjunto das causas secundárias, sem que haja a necessidade de imissão sobrenatural nos eventos particulares para explicar a origem das espécies.
Vejamos agora de que maneira a lógica e as evidências empíricas revelam a incompatibilidade entre a teoria científica da evolução e o teísmo. (8)
Seguramente, não necessitamos de intervenções sobrenaturais para explicar a produção de espécies insulares (como os tentilhões de Darwin) ou de variedades domésticas (como as raças caninas). Estes são eventos tão naturais e destituídos de propósito quanto a formação de uma montanha ou a evaporação da água.
No proverbial encontro entre Laplace e Napoleão Bonaparte ocorrido em 1802, o astrônomo francês declarou, em resposta a uma pergunta sobre Deus: “Não tenho necessidade dessa hipótese”. (9) Laplace admitiu a inutilidade do conceito de uma divindade intervencionista em astronomia. De modo análogo procedeu a biologia moderna no tocante à questão da origem das espécies.
O exemplo da produção de variedades domésticas é bastante esclarecedor. As mutações aleatórias fornecem aos criadores de plantas e de animais a matéria bruta para a elaboração de uma imensa variedade de novas linhagens. O método utilizado – de forma consciente ou inconsciente – pelos criadores é a seleção cumulativa, durante sucessivas gerações, de ligeiros desvios anatômicos ou comportamentais de natureza hereditária. Ora, as mutações que surgem aleatoriamente nada têm de milagrosas: um focinho um pouco mais curto, uma pelagem mais densa, um temperamento mais dócil, flores mais vistosas etc. A prática dos cruzamentos seletivos, ao longo de séculos ou de milênios, permitiu aos criadores, por exemplo, a transformação do lobo (Canis lupus) em centenas de raças caninas tão diferentes quanto o chihuahua, o são-bernardo e o buldogue. Quanto à maioria das plantas domesticadas, um leigo não faz ideia das diferenças que as separam de suas ancestrais selvagens. Em poucos séculos, os horticultores obtiveram, por exemplo, variedades como o repolho doméstico, o brócolis, a couve-flor e a couve-de-bruxelas a partir de um único ancestral, o repolho selvagem (Brassica oleracea); e somente um idiota diria que essas variedades foram produzidas por Deus.
Darwin observou que, em estado natural, as pressões ambientais desempenham o papel dos criadores humanos. No notório caso das Ilhas Galápagos, prosperaram as mutações aleatórias que conferiam aos tentilhões (migrados do continente sul-americano) um incremento adaptativo a condições de vida distintas: bicos de diversos tamanhos e formatos, úteis para as dietas mais variadas.
De modo análogo, peixes não relacionados de diferentes regiões do globo são isolados em cavernas e apresentam as mesmas respostas adaptativas (evolução convergente): uma progressiva atrofia do aparato visual, por exemplo. O cenário proposto pelos acomodacionistas é ridículo. A cada vez que uma população de peixes fosse isolada num ambiente trevoso, um designer inteligente operaria uma sequência correspondente de mutações que resultaria na redução do aparato visual. Com a mesma razão um teólogo poderia afirmar que Deus está por trás de um fenômeno como a deriva continental. Na Antiguidade, relâmpagos e trovões eram atribuídos a Zeus, e terremotos, à fúria de Posídon. Isso faz pensar que o discurso “sofisticado” de um Plantinga não passa de superstição ancestral apresentada sob a cobertura de ouropel de um jargão acadêmico embolado.
Num processo bastante conhecido, mutações aleatórias submetidas à seleção natural tornam os micro-organismos patógenos (bactérias e vírus) resistentes a antibióticos e antivirais. Certamente, seria o cúmulo da tolice pensar que algum milagre provoca tais mutações. O fenômeno, cujas causas são suficientemente compreendidas, pode ocorrer numa placa de Petri bem diante de nossos olhos, e não é mais misterioso do que qualquer reação estudada pela química. Logo, os partidários da evolução teísta têm o ônus de justificar a compatibilidade entre a evolução científica e o teísmo, uma vez que a natureza não revela nenhum sinal de uma intervenção divina no fenômeno das mutações.
De acordo com Plantinga, “Deus poderia ter alcançado os resultados que ele desejava fazendo com que as mutações certas surgissem nos momentos certos, deixando a seleção natural fazer o resto”. (10) Pois bem, alguém diria que as mutações apresentadas pelos micro-organismos patógenos foram produzidas por intervenções sobrenaturais? Ou, então, alguém diria que as raças caninas e as espécies insulares foram criadas por Deus? Nós não temos necessidade dessa hipótese. A partir dos exemplos citados, admitimos sem dificuldade que a evolução darwiniana só é compatível com o deísmo.
Outro fato depõe contra a ideia de um processo evolutivo guiado por Deus: a existência de mutações deletérias, as quais são muito mais comuns do que as mutações benéficas. Com efeito, qual divindade consciente poderia comprazer-se em produzir mutações que reduzem as chances de sobrevivência e de reprodução dos organismos? O fato estabelecido pela ciência é o seguinte: no caso de peixes, para citar apenas um exemplo, as mutações que causam cegueira podem ocorrer em ambientes iluminados, para prejuízo de seus portadores. Cabe ao ambiente dizer quais mutações são proveitosas. A mesma mutação pode aumentar ou diminuir o sucesso reprodutivo de um organismo.
A doutrina da evolução teísta parece-nos tão bizarra e mal-ajambrada que duvidamos que possa ser adotada na forma em que se apresenta, a qual examinamos até aqui. Somos levados a pensar que, na verdade, seus adeptos não têm em mente um processo genuinamente evolutivo (difícil precisar até que ponto suas ideias são claras), mas algo como a doutrina das criações sucessivas propugnada por criacionistas como Louis Agassiz (1807 – 1873), os quais admitem, em conformidade com o ensinamento da geologia, uma cronologia que excede imensamente os seis mil anos implicados pelas escrituras sagradas. Doutrina, aliás, insustentável à luz da anatomia comparada, da paleontologia e de outras disciplinas, embora mais inteligente do que a evolução teísta, na medida em que rejeita a existência de um vínculo genealógico real entre as espécies. Se todos os seres vivos são descendentes de um ancestral comum, a doutrina da criação divina cai por terra, pois resulta claro que as pequenas modificações hereditárias podem ser plenamente explicadas por meio de causas naturais (em contraposição à causa primeira ou sobrenatural). E a evolução nada mais é do que a acumulação de pequenas modificações úteis à sobrevivência e à reprodução dos organismos.
Para os acomodacionistas, o mal é a sensação de isolamento em relação ao que se presume ser a ciência oficial. Daí a aceitação de uma escala de tempo imensamente superior aos seis dias do relato do Gênesis, e da criação de tipos cada vez mais complexos no decorrer da história da Terra. O problema é que o evolucionismo científico não se restringe a afirmar que a criação da vida ocorreu ao longo de bilhões de anos.
Os teístas admitem que causas naturais e impensantes expliquem a reprodução dos indivíduos, fenômeno no qual está incluída a ocorrência de pequenas variações genéticas (mutações); parece provável, portanto, que os partidários da evolução teísta tenham em mente algo mais vultoso quando falam de mutações engendradas por Deus. Tudo leva a crer que imaginam macromutações que equivalem aos atos especiais de criação do antigo criacionismo. Assim, em sua concepção, “evolução” seria um processo semelhante àquele proposto por Agassiz: ao longo da imensa escala do tempo geológico, Deus seria responsável por múltiplos atos de criação: uma sucessão de classes taxonômicas cada vez mais elevadas (daí o aspecto “evolutivo” ou progressivo do processo), ainda que desprovidas de uma conexão filial. É indiferente se um indivíduo portador de uma macromutação tem origem num organismo pré-existente (pela reprodução sexuada ou assexuada) ou no mundo externo, mediante uma agregação súbita e miraculosa de átomos.
Não é difícil discernir que essas macromutações correspondem às estruturas biológicas irredutivelmente complexas postuladas pelos partidários do intelligent design. Assim, uma grave objeção à evolução teísta é oriunda do estudo das afinidades taxonômicas. Com efeito, a criação de estruturas irredutivelmente complexas é incompatível (aqui, no sentido lógico) com a tese da descendência comum de todas as espécies. Os fatos de homologia, os órgãos vestigiais e as semelhanças do código genético atestam as relações de parentesco entre as espécies, e essas relações excluem a possibilidade da geração súbita de estruturas complexas (natura non facit saltus). Korthof percebeu assim a incoerência da tese de Michael Behe, um proponente do intelligent design que defende o fato da evolução: “Toda intervenção sobrenatural é uma violação da descendência comum, pois ela significa que um novo sistema irredutivelmente complexo não foi herdado dos progenitores do indivíduo no qual esse sistema apareceu pela primeira vez”. (11)
Os partidários do intelligent design alegam não terem nenhum problema particular com a tese da descendência comum: “Em si mesma, a ancestralidade comum não elimina a necessidade de um criador”. (12) Será verdade? Compreendida adequadamente, a tese da descendência comum poderia ser harmonizada com a crença na geração súbita de sistemas complexos? Se uma estrutura não foi geneticamente herdada, mas produzida ex nihilo por uma causa inteligente, as homologias são ilusões produzidas por uma divindade enganadora, e não sinais genuínos de parentesco.
Behe vê sinais explícitos de design na produção do primeiro vertebrado: “O design explícito parece entrar na biologia em certo nível, no nível da classe dos vertebrados, mas não necessariamente além dela”. (13) No entanto, não há um fosso genético (conforme a descontinuidade implicada pela tese do design) que separa os vertebrados de seus parentes cefalocordados, hemicordados e urocordados. O fato é que todas as formas de vida conhecidas compartilham o mesmo código genético.
Por um lado, o surgimento súbito de estruturas complexas viola a cadeia genealógica que conecta todas as espécies por meio das homologias; por outro, pequenas variações genéticas não necessitam da intervenção de uma inteligência criativa. Tertium non datur. Ou evolucionismo materialista, ou a velha e obsoleta doutrina das criações especiais. Diante da evidência esmagadora proveniente da anatomia comparada e da biologia molecular, o criacionista conta com uma única saída desesperada: buscar refúgio no conceito de uma divindade enganadora à la Philip Gosse (autor de Omphalos), cujas ações são compatíveis com todas as configurações empíricas imagináveis. Assim, as homologias, os órgãos vestigiais e as coincidências do código genético seriam considerados aparências enganosas que simulam a ordem filogenética – uma tese absurda que não pode ser refutada.
Percebemos que Behe tentou aproximar-se do ponto de vista científico, ao endossar, além de uma cronologia antibíblica da ordem de bilhões de anos, o fato da evolução – e isso parece suficiente para todos os evolucionistas que buscam a concórdia com a ciência oficial. Porém, vista de perto, a hipótese do design destrói a ideia de descendência comum e insere a descontinuidade na história da vida. Ora, uma “evolução” descontínua não difere essencialmente da doutrina de Agassiz.
Outra objeção à evolução teísta pode ser formulada a partir de uma analogia com um episódio bíblico. Conforme o estranho relato evangélico, a cura do cego de Betsaida não se operou de uma só vez e perfeitamente, mas gradualmente. Jesus é obrigado a tocá-lo duas vezes para remediar a insuficiência da primeira operação miraculosa:
Ele tomou o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia e, cuspindo-lhe nos olhos, e impondo-lhe as mãos, perguntou: Vês alguma coisa? O cego, levantando os olhos, respondeu: Vejo as pessoas como árvores que andam. Tornou Jesus a pôr-lhe as mãos nos olhos e ele, olhando firmemente, ficou restabelecido, e já via ao longe e distintamente a todos. (14)
Ora, se Deus é onipotente, por que o restabelecimento sobrenatural da visão necessita ser gradual? No que diz respeito à Criação, como argumentou Descartes, somente o surgimento súbito e completo seria adequado à onipotência divina: “Adão e Eva não foram criados como crianças, mas com a idade de homens perfeitos”. (15) Um ser onipotente não necessitaria do simples para gerar o complexo; ele poderia, por exemplo, ter criado mamíferos no período Cambriano, ou répteis antes de peixes. Assim, é mais provável que Deus alcançasse seus intentos à maneira do bom e velho criacionismo bíblico, ou seja, mediante a produção ex nihilo de novas espécies.
Num debate com Francis Collins organizado pela revista Time em 2006, Dawkins apontou a estranheza da evolução teísta:
Se Deus desejava criar a vida e os seres humanos, seria um pouco bizarro que ele devesse escolher a via extraordinariamente indireta de esperar 10 bilhões de anos até que a vida surgisse, e então esperar por mais quatro bilhões de anos até que houvesse seres humanos capazes de rezar, pecar e de todas as outras coisas que interessam às pessoas religiosas. (16)
Certamente, um olhar lançado à história da vida na Terra revela alguns fatos surpreendentes que depõem contra a hipótese da criação divina: os primeiros seres vivos, organismos unicelulares, surgiram há pelo menos 3,5 bilhões de anos; e os primeiros organismos pluricelulares, há cerca de 700 milhões de anos. Logo, por um lapso de tempo inimaginável de aproximadamente 3,5 bilhões de anos, só existiram seres unicelulares (bactérias e algas azuis) em nosso planeta. Com qual finalidade? Isso significa que Deus desejava criar os seres humanos desde o início? Para se ter uma ideia da enormidade da época em que a vida unicelular dominou a Terra, as primeiras civilizações não existiram há mais de 10 mil anos.
E o que dizer da afirmação de que o curso da evolução foi pré-ordenado em vista da criação do ser humano? De acordo com Richard Owen (1804 – 1892), eminente zoólogo britânico e grande rival de Darwin, a teoria da evolução (ou “derivação”, em sua terminologia) “reconhece um propósito no curso definido e pré-ordenado”. (17) Owen sequer se envergonha em dizer que o cavalo evoluiu para servir a necessidades humanas: “Creio que o cavalo foi predestinado e preparado para o homem”. (18) No entanto, desde a época de Owen, as pesquisas paleontológicas mostraram que, no que diz respeito à evolução do cavalo, não há uma via régia que conduz do Eohippus, um animal do tamanho de um cachorro, ao moderno Equus. Na verdade, muitas linhagens são contemporâneas, de modo que cavalos de três dedos coexistiram com espécies de apenas um dedo. Do mesmo modo, se o ser humano fosse o “Ponto Ômega” da evolução (conforme a teoria acomodacionista de Teilhard de Chardin), como explicar a extinção de hominídeos tais como o Australopithecus robustus, o Homo neanderthalensis e o Homo floresiensis? Calcula-se que 99% das espécies que já existiram foram extintas sem deixar descendentes. Longe de se assemelhar a uma escala linear (nos moldes da desacreditada ortogênese ou “evolução em linha reta”), o registro fóssil revela que a evolução tem o aspecto de um arbusto incrivelmente ramificado. De fato, a maioria dos fósseis transicionais (como o Archaeopteryx) representam linhagens colaterais extintas.
Por fim, observemos que não faz o menor sentido dizer que “Deus cria por meio da evolução”, uma fórmula que se tornou um clichê na boca dos acomodacionistas. Com efeito, os próprios teístas não teriam dificuldade em admitir que as espécies insulares e as variedades domésticas não foram criadas por um designer inteligente. E, de acordo com a ciência da evolução, há apenas uma diferença de grau entre a produção de uma raça canina e a produção das divisões taxonômicas mais elevadas. Tudo depende da quantidade de modificações em si mesmas despretensiosas acumuladas ao longo do tempo. A única saída do acomodacionista, como vimos, seria supor um tipo mais pretensioso de mutação – o surgimento súbito de sistemas complexos –, o qual, infelizmente, é logicamente incompatível com a tese da descendência comum, na medida em que introduz a descontinuidade na cadeia filogenética.
Podemos concluir que a evolução teísta não é suportada pela lógica e por nenhuma evidência empírica, e que há uma diferença bastante clara entre o processo materialista proposto pelos cientistas e aquele, dirigido por uma inteligência, defendido pelos acomodacionistas. Além de desonestos quando procuram negar a existência de um conflito real entre a ciência e a religião, os conciliadores só são capazes de defender a ideia de um Deus intervencionista à custa da obnubilação de todas as evidências que atestam a existência de um processo evolutivo absolutamente desprovido de propósito.
Bibliografia
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HAHN, R. Pierre Simon Laplace, 1749-1827: A Determined Scientist. Harvard: Harvard University Press, 2005.
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Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Editora Vida, 1994.
Sites
Instituto Gallup: http://www.gallup.com
The New York Times: http://www.nytimes.com
Time: http://www.time.com
Notas (Clique pra voltar ao texto)
(1) Where the Conflict Really Lies: Science, Religion, & Naturalism, p. 16.
(2) “Evolutionism, Creationism, Intelligent Design”. Disponível em: http://www.gallup.com/poll/21814/evolution-creationism-intelligent-design.aspx. Acesso em: mar. 2013.
(3) Finding Design in Nature. Disponível em: http://www.nytimes.com/2005/07/07/opinion/07schonborn.html?_r=3&pagewanted=all&. Acesso em: mar. 2013.
(4) “Trata-se de boas novas, e embora eu represente o magistério da ciência, recebo com alegria o apoio do líder principal do outro grande magistério de nossa complexa existência [...]”. A montanha de moluscos de Leonardo da Vinci, cap. 14.
(5) Defeating Darwinism by Opening Minds, pp. 16-17.
(6) “Penso em geral (e mais ainda, à medida que envelheço), mas não sempre, que agnóstico seria a descrição mais correta de meu estado de espírito”. Apud A. DESMOND & J. MOORE, Darwin: a vida de um evolucionista atormentado, p. 648.
(7) On the Origin of Species by Means of Natural Selection, cap. XIV.
(8) Notemos que a incompatibilidade não necessita ser compreendida em sentido lógico. Pode ser logicamente possível (desde que respeitada a tese da descendência comum) que Deus tenha dirigido a evolução, embora as evidências empíricas não justifiquem essa hipótese. Do mesmo modo, é logicamente possível que o mundo seja uma ilusão forjada por alguns cientistas malignos.
(9) Apud R. HAHN, Pierre Simon Laplace, 1749-1827: A Determined Scientist, p. 172.
(10) Where the Conflict Really Lies: Science, Religion, & Naturalism, p. 16.
(11) Common Descent: It’s All or Nothing, p. 43.
(12) P. JOHNSON, Darwinism Defeated? The Johnson-Lamoureux Debate on Biological Origins, p. 49.
(13) The Edge of Evolution, p. 220.
(15) Princípios da filosofia, Parte III, art. 45.
(16) A transcrição de excertos do debate faz parte do artigo God vs. Science, de David Van Biema, publicado em 5 de novembro de 2006. Disponível em: http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,1555132,00.html. Acesso em: mar. 2013.
Vou continuar sendo Ateu.
ResponderExcluirBelo texto! Muito bem escrito e fundamentado. Parabéns!
ResponderExcluirMuito bom, claro e concatenado o artigo do Giuliano T. Casagrande. Mas, parece que como todo cientista, derrapa nas coisas mais simples que constatamos "ictu oculi" e eles, cientistas, se negam a enxergar, o que é causa de grande embaraço e perplexidade.
ResponderExcluirA primeira tem relação direta com o teísmo e com o deísmo. Segundo o artigo, no sistema teísta Deus intervém em todos os fenômenos da criação enquanto que no deísta Deus criou as coisas - ou um imenso projeto - e tudo o mais foi relegado a um meio acaso a partir daí.
Outra é a visão cambaia de que o cão doméstico deriva do lobo, conforme é dito no texto, inclusive ilustrado pela fotografia de um um simpático "lupus".
Como sempre acontece nesses casos, lá vem o Darwin de permeio a sustentar sabe-se lá bem o quê.
De meu lado e na linha do texto, acredito, sim, no sistema teísta: acredito que Deus intervém na Criação até porque "nenhum fio de cabelo cai de nossa cabeça sem a vontade do Pai": ou seja, desde a Criação do mundo, Deus já predestinou as coisas. Neste ponto sou um pouco calvinista!
De outro lado, é impressionante como ainda se acredita que um ser possa ter-se originado de outro, como por exemplo os cachorros de lobos: cachorros são cachorros, lobos são lobos, homens são homens, símios, símios.
Não há a mínima hipótese sensata em imaginar, como Dawkins, por exemplo e sua pedante "Grande História da Evolução" onde escreve lérias à Chaucer nos "Contos de Cantebury", para afirmar que em determinadas épocas da História nós tivemos um ancestral comum com o macaco por exemplo, onde uma vertente se transformou em hominídeos e a outra permaneceu símia.
Isso inclusive contraria a própria teoria de Darwin. Teoria que, ou muito me engano, ou diz muito MENOS do que seus seguidores, muitos radicais, tentam dizer que é: posso estar tremendamente enganado,mas o britânico tratava da seleção natural das espécies e isso a gente concorda sem titubear porque não nos oferece dificuldade alguma.
Ficamos perplexos, mesmo, é com muitas voltas que pouco dizem em conclusão certeira, embora prenhes de bons argumentos e de vasta bibliografia.
Que texto belo! Liso e informativo!
ResponderExcluirPerfeito. A Teoria Sintética da Evolução (ou neodarwinismo, como queiram) se fundamenta precisamente no caráter aleatório das mutações, combinado com a pressão seletiva do meio, bem compreendida por Darwin, e portanto exclui, sim, a necessidade de qqr forma de "intencionalidade" ou de "projeto", q é o cerne do criacionismo.
ResponderExcluirIndo um pouco além, seria interessante observar como, a rigor, os argumentos teístas mais em voga, a saber, o do criacionismo e o da "sintonia fina", são mutuamente excludentes. Se uma inteligência infinita pudesse criar um universo perfeitamente ajustado para o surgimento da vida inteligente, não precisaria voltar a intervir de tempos em tempos para isso. Se precisa intervir, é pq não teria sido capaz de criar um universo perfeitamente ajustado...