05/11/2012

O positivismo lógico e a religião


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Introdução

Tradicionalmente, a grande controvérsia filosófica no tocante às crenças religiosas costuma ocorrer entre teístas, ateístas e agnósticos. Os três pressupõem – de modo tácito ou declarado – que Deus é uma entidade mundana que poderia ou não existir (assim como unicórnios), e que sua existência poderia ou não ser conhecida.

No século XX, mediante uma reflexão sobre o caráter absolutamente inverificável dos enunciados metafísicos, um novo tipo de objeção foi formulado contra as crenças religiosas. Prefigurado por pensadores das tradições empirista e materialista (Berkeley, Hume, Holbach etc.), o positivismo lógico sustenta que uma proposição como “um Deus metafísico existe” não seria nem falsa nem verdadeira, mas desprovida de sentido.

No cerne do positivismo lógico está a teoria do significado baseada no princípio da verificação. (1) De acordo com Moritz Schlick e Rudolf Carnap, seus formuladores, há somente duas classes de enunciados significativos. À primeira pertencem as proposições analíticas ou tautológicas. Puramente formais, elas nada dizem sobre a realidade. À segunda classe pertencem as proposições empiricamente verificáveis (fatuais). Os enunciados metafísicos não seriam nem analíticos e nem verificáveis (em princípio). Daí decorre, segundo o positivismo lógico, sua assignificatividade epistemológica (embora não emocional). Entretanto, seria incorreto pensar que todos os enunciados teológicos são do tipo metafísico. Muitos deles admitem a existência de entidades imanentes ao sistema do mundo. Portanto, eles seriam significativos e devidamente investigados pelas ciências empíricas.

Schlick e Carnap são autores de duas importantes contribuições à filosofia da religião: primeiramente, de uma clara distinção entre os enunciados teológicos metafísicos e empíricos; em segundo lugar, da teoria segundo a qual os enunciados metafísicos são desprovidos de sentido, em razão de sua inverificabilidade. O presente artigo tem o propósito de examinar tal acusação de carência de sentido a partir da distinção entre os dois tipos de enunciados teológicos.


Deuses empíricos

Como dissemos, uma justa apreciação da crítica neopositivista da religião depende do entendimento da distinção entre os enunciados teológicos empíricos e os enunciados teológicos metafísicos. Aos primeiros correspondem as divindades de natureza material; aos segundos, as divindades puramente espirituais. Carnap ocupou-se dessa distinção em A superação da metafísica pela análise lógica da linguagem. Em sua visão, o positivismo lógico formula unicamente a crítica das proposições teológicas metafísicas e deixa o julgamento das demais a encargo das ciências empíricas. (2)

Não são poucos os sistemas filosóficos e religiosos que professam a existência de deuses formados de algum tipo ordinário ou exótico de matéria. Consideremos os seguintes testemunhos de todas as épocas da cultura ocidental. Os poemas de Homero e de Hesíodo falam de divindades que existem da maneira mais mundana. (3) Os deuses dos antigos gregos nascem, crescem, casam-se, têm filhos, trabalham, sofrem e cometem erros e ações indignas. (4) Tales de Mileto, para quem a água é o princípio de todas as coisas, “julgou que tudo está pleno de divindades”, (5) ou seja, que a matéria primordial é viva e pensante. Diógenes de Apolônia, outro naturalista jônico, admitiu a existência de um Deus inteligente de natureza aérea. (6) Para Heráclito, Deus é a matéria ígnea que governa o Universo. (7) Epicuro postulou a existência de inúmeros deuses antropomórficos compostos de átomos sutis, a exemplo da alma humana. Imperceptíveis aos sentidos ordinários, vivem bem-aventurados nos espaços entre os mundos e a eles não é atribuída a ordem observável do Universo. (8) Igualmente notável é a ontologia materialista dos estoicos. De acordo com Lange, os estoicos “explicam toda a realidade como consistindo de corpos. Deus e a alma humana, virtudes e emoções, são corpos”. (9)

Em que pesem as sutilezas metafísicas das exegeses alegóricas dos alexandrinos (Fílon, Orígenes), as escrituras judaico-cristãs apresentam uma divindade que revela um modo de ser antropomórfico e material. De acordo com o Gênesis, por exemplo, Deus descansa após realizar sua obra de criação (2:2-3), arrepende-se de ter criado a vida (6:7) etc. Para não mencionarmos a doutrina neotestamentária do Deus encarnado, conforme as palavras do prólogo joânico (1:14).

Inspirado pelo corporeísmo estoico, Tertuliano atribuiu ao Deus cristão uma natureza material, ainda que intangível e invisível aos sentidos grosseiros dos seres humanos. (10) Cabe ressaltar neste ponto que os átomos da física moderna, embora invisíveis aos olhos humanos desassistidos, são plenamente verificáveis de modo direto (por meio de instrumentos especiais de visualização) ou indireto (por meio de seus efeitos). Em outras palavras, a “invisibilidade” crua de um objeto é totalmente irrelevante para o conceito científico e filosófico de verificação empírica. Mais de um milênio após Tertuliano, Hobbes evocou a autoridade do antigo Padre da Igreja como parte da defesa contra uma possível acusação de heresia. (11) Com efeito, Hobbes chegou a sugerir (no Leviatã) que Deus poderia ser um corpo (pois uma existência imaterial não poderia ser pensada). Numa revivescência da teologia estoica, teríamos uma matéria sutil e inteligente difundida pelo Universo. Lange conta-nos que, “Se alguém pudesse ter entreouvido uma conversação confidencial entre Gassendi e Hobbes, talvez tivesse sido capaz de captar uma disputa acerca da questão de se o calor que tudo anima ou o éter que tudo envolve deve ser considerado como a Divindade”. (12)

Na verdade, a maioria dos cristãos admite a existência de uma divindade interna ao sistema do mundo empírico, uma vez que geralmente se crê que ela interfere nas mais variadas ocorrências da ordem natural, dos eventos quânticos à evolução das espécies. (13) Não se afirma apenas que Deus dá o ser à totalidade do Universo, à maneira da causa primeira de Tomás de Aquino, mas que ele age no interior da natureza, dando origem ao big bang (um evento empírico) e ao design inteligente dos organismos, além de responder a orações e operar milagres. Como reconheceu o secularista David Strauss, autor da célebre Vida de Jesus (1835), em que se rejeita por completo o elemento sobrenatural (miraculoso) das narrativas evangélicas – a imissão imediata e pontual do Absoluto na esfera empírica –, um Deus transcendente poderia atuar de modo exclusivamente global, ou seja, sobre o conjunto indeterminado dos elementos do mundo empírico. (14) Ora, inúmeros cristãos professam a crença na imissão particular (em contraposição à atuação de alcance global); logo, são obrigados a admitir uma divindade de natureza empírica. E a existência de um Deus empírico, conforme Carnap, estaria sujeita ao julgamento das ciências empíricas. (15)

Ao retornar da primeira viagem realizada por um ser humano ao espaço sideral, o cosmonauta russo Iúri Gagárin teria declarado não ter visto Deus. Os metafísicos obviamente retorquiriam que Deus é absolutamente invisível e habita os recessos numênicos inacessíveis à perquirição científica. De fato, o conceito de um Deus transcendente sequer seria arranhado pela observação de Gagárin. De qualquer forma, a conquista do céu pelos cosmonautas evidencia a natureza bipolar do discurso teológico. Como observou Carnap, os enunciados teológicos ora são tomados como referentes a entidades observáveis, ora como referentes a entidades transempíricas.

Com efeito, o princípio do parecer de Gagárin não é incorreto. Ele consiste numa refutação apropriada de certas concepções teológicas bíblicas (segundo uma exegese literal). “Não está Deus na altura dos céus? Olha para a altura das estrelas, quão elevadas estão! Contudo tu dizes: Que sabe Deus? Julga ele através de escuridão tão densa? Grossas nuvens o encobrem, de modo que não nos pode ver enquanto passeia pela abóbada do céu” (Jó 22:12-14). De acordo com o mesmo princípio metodológico, outras noções teológicas empíricas também poderiam ser cientificamente testadas.

Esse foi o caminho trilhado pelo físico norte-americano Victor Stenger, autor de God: The Failed Hypothesis (2007). Em concordância com o dictum carnapiano acerca dos enunciados teológicos empíricos, Stenger investigou a existência da divindade judaico-cristã-islâmica como se se tratasse de uma hipótese científica. O procedimento é plenamente justificado pelo papel ativo que essa entidade desempenharia no mundo empírico. (16) De fato, os partidários dos três monoteísmos não se limitam a afirmar a existência de um Deus que age de modo externo, sobre a totalidade do sistema das coisas materiais. Muito pelo contrário, a ele é atribuída uma multidão de efeitos empíricos particulares: da conflagração do big bang ao delineamento das adaptações orgânicas, para mencionar dois argumentos preferidos dos teólogos naturais empiristas.

Assim, segundo Stenger, as evidências estudadas pela biologia evolutiva falsificam a hipótese criacionista. Em outras palavras, o mundo seria empiricamente distinto se o criacionismo fosse verdadeiro (mas seria empiricamente idêntico no caso da vigência de um conceito teológico de caráter externo ou global). A presença hipotética de fósseis de mamíferos em estratos cambrianos, por exemplo, falsificaria a teoria evolutiva e consistiria em forte evidência a favor da doutrina das criações especiais. Além disso, a ocorrência de estruturas orgânicas não funcionais (como os olhos dos animais cavernícolas) depõe contra a existência de um designer inteligente. Quanto à questão da origem do Universo, o atual conhecimento cosmológico indica que nosso universo particular não passou a existir com o big bang, mas surgiu de um universo pré-existente. (17) Os exemplos da biologia e da cosmologia, portanto, mostram como uma hipótese teológica empírica poderia ser confirmada ou infirmada pelas evidências disponíveis.

Ora, é manifesto que a crítica do discurso teológico metafísico (como a levada a cabo por Kant e pelos positivistas lógicos) passa ao largo das proposições investigadas por Stenger e pelos ateus de modo geral – pois o ateísmo somente poderia ser professado a respeito de uma hipótese teológica dotada de conteúdo empírico. Um contrassenso análogo seria imaginar que a crítica da metafísica pudesse se pronunciar acerca da existência de fantasmas.

Em anos recentes, o movimento intelectual conhecido como novo ateísmo – originado pela publicação de The God Delusion (2006), de Dawkins – apresentou-se como a crítica científica dos enunciados teológicos. O filósofo marxista britânico Terry Eagleton percebeu acuradamente a índole empirista do movimento:

Não existe, provavelmente, prova maior da ignorância teológica de Ditchkins [fusão dos nomes de Dawkins e Hitchens] do que o fato de que ele parece avalizar o que poderia ser chamado de “noção Abominável Homem das Neves” da crença em Deus. Defino assim a visão de que Deus é uma entidade para a qual, como o Abominável Homem das Neves, o monstro do Lago Ness ou a cidade perdida de Atlântida, as provas de que dispomos até agora são radicalmente ambíguas, para não dizer totalmente dúbias [...]. (18)

Devemos apenas relevar a censura à “ignorância teológica” dos ateus, pois Eagleton parece não ter a menor compreensão da distinção carnapiana entre os enunciados teológicos empíricos e metafísicos. E se mantida a censura, tal “ignorância teológica” deveria ser atribuída primordialmente à quase totalidade dos adeptos dos três grandes monoteísmos, os quais postulam a existência de uma divindade que interfere pontualmente em todos os assuntos do mundo empírico. De fato, um Deus externo não poderia ser o autor do big bang, das adaptações orgânicas e de revelações a um povo eleito. Se há um crime no procedimento dos ateus, tal crime é somente o reflexo invertido da atitude dos que afirmam que Deus poderia existir à maneira de um objeto mundano: um “vertebrado em estado gasoso”, no célebre dizer de Häckel.

E não seria de nenhum auxílio recorrer a um mero expediente nominal, segundo o qual uma divindade com tais atributos empíricos seria um ser espiritual e afastado da imediatez das coisas mundanas, como se isso bastasse para fundamentar uma diferença radical entre os planos de existência. Em questões ontológicas, tais manobras terminológicas são irrelevantes. O fato é que um ser considerado como “espiritual” poderia ser apenas constituído de um tipo de matéria distinto daquele ordinariamente apreendido pelos sentidos. Um metafísico consequente como Descartes jamais definiria a imaterialidade de maneira laxa e simplesmente fazendo concessões a modos de expressão populares – como se o cogito que resulta da anulação rigorosamente metódica da totalidade do mundo empírico pudesse ser uma coisa distinta do pensamento puro: algo como uma substância vaporosa e intangível, embora ontologicamente idêntica às coisas compostas de matéria grosseira. Os metafísicos consequentes e os positivistas lógicos estão a anos-luz de distância da brincadeira infantil que compara a invisibilidade do ar à inverificabilidade rigorosa das entidades metafísicas. O ar, como é do conhecimento do maior dos beócios, é uma mistura de gases cuja existência é plenamente verificável, ao contrário dos objetos estudados pelos metafísicos. Aplicado à metodologia científica, o adágio de Tomé significaria que a verificação em sentido lato (e não a mera visibilidade aos olhos desassistidos) constitui a alma das ciências empíricas.


Deuses metafísicos

Vimos que o conhecimento científico é incompatível com várias asserções teológicas a respeito do mundo empírico: não poderíamos simplesmente julgar, por exemplo, que a doutrina das criações especiais pudesse ser legitimamente defendida em face das evidências provenientes de disciplinas como a paleontologia e a anatomia comparada. No entanto, há uma classe de proposições teológicas que poderiam ser facilmente postas em harmonia com quaisquer configurações empíricas. São as proposições externas: indiferentes aos elementos que compõem o sistema do mundo empírico.

No século XIX, os progressos formidáveis alcançados pela recém-nascida ciência geológica deram azo a ásperas querelas teológicas. À época, o chamado nó geológico consistia na tentativa de harmonizar o relato criacionista do Gênesis e as evidências empíricas que atestavam a imensa ancestralidade da Terra. A solução mais engenhosa foi a proposta por Philip Gosse em Omphalos: uma tentativa de desatar o nó geológico, publicado em 1857. Hoje, o sistema metafísico de Gosse figura ao lado da hipótese cartesiana do deus enganador como o modelo de teoria externa e inverificável.

Como naturalista reputado, Gosse não poderia simplesmente fechar os olhos aos sinais geológicos incontestáveis de uma cronologia que excedia imensamente os seis mil anos implicados pelas escrituras sagradas. Para respeitar as evidências científicas e ao mesmo tempo a integridade literal do relato mosaico, Gosse tomou o caminho mais óbvio: concebeu um fiat divino do qual se origina o sistema do mundo empírico como um todo. Dentro deste sistema, evidentemente, estão inclusas as marcas de um passado remoto que jamais teria existido de fato. Assim, as diversas camadas sedimentares e os fósseis (testemunhos geológicos de antiguidade) surgiram completos no mesmo instante em que a Terra foi criada. O Deus de Gosse consolida o ilusionismo nas rochas, ou seja, em elementos do mundo externo; o enganador cartesiano, na mente de um sujeito desencarnado. Nos dois casos, nenhuma observação empírica concebível seria capaz de separar a ilusão da verdade. Nenhum teste científico, portanto, seria capaz de confirmar ou infirmar um enunciado teológico metafísico. Tudo ocorre como se o mundo criado por Deus fosse idêntico a um mundo incriado.

Todos os sistemas teológicos autenticamente metafísicos são obrigados a endossar os atributos inverificáveis de uma divindade à la Descartes-Gosse. Ao analisar o enunciado solipsista em Sentido e verificação, Schlick mostrou que o subjetivismo metafísico (global) não se distingue do realismo puro, e que um enunciado idêntico à sua negação não seria significativo. Do mesmo modo, afirmar que um Deus metafísico existe é enunciar uma proposição que não pode ser nem falsa nem verdadeira. Por mais que se tente, nenhuma observação serviria para atestar sua validade.

A rigor, tanto teístas como ateístas creem que Deus é um objeto mundano cuja existência implicaria em diferenças empiricamente verificáveis. O teísta alega que Deus se revelou fisicamente aos autores das escrituras sagradas (na forma de sarças ardentes, pilares de fogo e milagres de todas as espécies), e que a hipótese teológica é necessária para explicar a origem empírica do Universo e dos seres vivos. O ateísta afirma que os fenômenos naturais indicam uma origem puramente natural, e que os livros sagrados não foram inspirados por uma entidade sobre-humana. Depreende-se daí que a controvérsia entre teístas e ateus jamais poderia dizer respeito a uma divindade radicalmente transcendente (como a de Descartes). Com efeito, se um Deus metafísico existisse, a configuração do mundo empírico não seria minimamente diferente. Somente a existência de um item do sistema do mundo estaria sujeita a ser constatada. Portanto, teístas e ateus disputam necessariamente sobre a existência de uma entidade ao estilo do Abominável Homem das Neves. E o mesmo poderia ser dito a respeito dos agnósticos. O teólogo metafísico Paul Tillich observou com justeza que todos aqueles que reconhecem a possibilidade da questão da existência de Deus resvalam de qualquer forma para o campo do “ateísmo” (pensado em relação a um ser absolutamente transcendente): “Deus não existe [à maneira dos seres mundanos]. Ele é o ser-em-si para além de essência e existência. Assim, argumentar em favor da existência de Deus é o mesmo que negá-lo”. (19)

Contra a primeira prova teísta de Descartes, o corporeísta Hobbes (autor das Terceiras objeções) negou a existência da ideia de Deus. Hobbes não se refere à ideia de uma entidade ontologicamente idêntica àquelas que, conforme a mitologia, habitavam o Olimpo, mas à ideia de um ser metafísico, ou seja, rigorosamente imaterial:

Quando alguém pensa em um anjo, às vezes a imagem de uma chama apresenta-se ao espírito, e às vezes aquela de uma criancinha provida de asas, da qual penso poder afirmar com segurança que ela não se assemelha a um anjo, e portanto, que ela não é a ideia de um anjo; mas, crendo que há criaturas invisíveis e imateriais, que são os ministros de Deus, nós damos a uma coisa em que cremos ou supomos, o nome de anjo, ainda que a ideia sob a qual eu imagino um anjo seja composta das ideias das coisas visíveis. O mesmo ocorre com o nome venerável de Deus, de quem nós não temos nenhuma imagem ou ideia; é porque nos proíbem de adorá-lo na forma de uma imagem, com receio de que pareça que nós concebemos aquele que é inconcebível. (20)

Ora, se a ideia de uma divindade metafísica não existe, a demonstração teológica idealista de Descartes fracassa. Hobbes prefigurou a antimetafísica dos positivistas lógicos. Por sinal, os enunciados teológicos metafísicos constituíram um dos principais alvos da crítica de Schlick-Carnap. Em suma, essa crítica assevera que o significado da palavra “Deus” (em sentido metafísico) não pode ser estabelecido; portanto, que o conceito de uma divindade transcendente é impensável.

De acordo com Schlick-Carnap, todo discurso significativo reduz-se a uma das seguintes categorias: primeiramente, temos os enunciados meramente formais, também chamados de analíticos (conforme a definição de Kant) ou tautológicos (conforme a definição de Wittgenstein). (21) A esta categoria pertencem as proposições da lógica e da matemática. Em segundo lugar, temos as proposições pertencentes às ciências empíricas. O discurso metafísico, que não se enquadra em nenhuma dessas categorias, é considerado como carente de sentido. (22)

Sabemos que vários enunciados teológicos são metafísicos. Proposições como “um Deus metafísico existe” não são tautológicas. Além disso, não é possível verificá-las por recurso à experiência, uma vez que um Deus metafísico ou transcendente é, por definição, externo ao sistema do mundo empírico. Resulta daí, segundo os positivistas lógicos, a falta de sentido das proposições teológicas metafísicas. Para falar com rigor, a existência de um Deus transcendente não poderia ser negada, pois os enunciados metafísicos não são passíveis de contestação no terreno empírico. Carnap afirma:

A diferença entre nossa tese e aquela dos antimetafísicos anteriores aparece [...] claramente. Para nós, a metafísica não é “pura quimera”, ou “fábula”. Os enunciados de uma fábula não contradizem a lógica, mas somente a experiência; eles são plenos de sentido mesmo quando são falsos. A metafísica não é uma “superstição”; podemos crer tanto em enunciados verdadeiros como em enunciados falsos, mas não em sequências de palavras desprovidas de sentido. (23)

Em outras palavras, o ateísmo significativo está irremissivelmente atado à questão da existência de deuses empíricos. Assim, se a afirmação da existência de um Deus metafísico é carente de sentido, então a tese contrária, o ateísmo metafísico, é igualmente carente de sentido.

Para Carnap, a teologia oscila entre as proposições cientificamente testáveis e as proposições inverificáveis e não significativas:

Em seu emprego metafísico, [...] “Deus” designa alguma coisa supraempírica. Arrancamos expressamente dessa palavra o significado de “ser corpóreo” ou aquele de “ser animado observado no mundo dos corpos”. E como não lhe conferimos nenhum significado novo, essa palavra torna-se desprovida de sentido. (24)

É preciso atentar ao que os positivistas lógicos entendem exatamente pela acusação de falta de sentido das proposições metafísicas. Para muitos, carece de sentido a afirmação de que Deus é um velho de longas barbas que mora no céu, segundo a representação de um Michelangelo e em conformidade com as palavras do salmista: “O Senhor estabeleceu o seu trono nos céus” (Salmos 103:19). No entanto, para os positivistas lógicos, a acusação de falta de sentido nada tem a ver com o fato de que um enunciado contraria o senso comum e as noções mais básicas extraídas da experiência. Trata-se justamente do contrário: “No sentido estrito, é desprovida de sentido uma sequência de palavras que não constitui um enunciado no interior de uma certa língua”. (25) Por mais inverossímil que seja, a existência de uma divindade do tipo ancião poderia, ao menos em princípio, ser empiricamente verificada. Os cosmonautas, com efeito, poderiam ter encontrado sinais de Deus e de sua morada celestial. Portanto, estamos diante de um enunciado pleno de sentido, ainda que (muito provavelmente) falso. Por outro lado, a existência de uma divindade metafísica é congruente com todos os estados empíricos possíveis. Nenhuma experiência poderia confirmá-la ou refutá-la, de modo que sua afirmação não seria distinta de sua negação. Assim como no caso da controvérsia entre o idealismo e o realismo, o mundo do teísta (metafísico) é idêntico ao mundo do ateísta. Se fosse possível apontar uma diferença, Deus seria uma entidade empírica, ou seja, não transcendente. E, naturalmente, uma entidade empírica cairia sob a jurisdição dos métodos empíricos de investigação.

Consequentemente, se a crítica formulada pelos positivistas lógicos rejeita como destituída de sentido a existência de uma divindade metafísica, os argumentos científicos seriam válidos apenas contra a existência de divindades imanentes ao mundo material. Com efeito, como a configuração do Universo revelada pelas ciências empíricas poderia dizer respeito à existência de um ser radicalmente transcendente? Ciente da distinção entre os enunciados metafísicos (globais) e os enunciados empíricos (particulares), Wittgenstein declarou de maneira lapidar: “Como o mundo é, é para O que está acima, completamente indiferente. Deus não se revela no mundo”. (26) Wittgenstein esclarece: “O que é místico é que o mundo exista, não como o mundo é”. (27) Resulta daí o paralogismo que consiste em imaginar que a configuração interna do mundo (“como o mundo é”) pudesse ser associada à defesa ou à crítica de um enunciado transcendental (externo ao sistema dos objetos empíricos). Tomemos a peça mais estimada da teologia natural, o argumento do desígnio, baseado na configuração específica exibida por determinados setores do mundo físico (o suposto ajuste fino das constantes cosmológicas ou a complexidade funcional dos organismos). Se bem-sucedido, ele seria capaz de provar a existência de um artífice imanente: um designer inteligente que poderia muito bem ser identificado como uma forma de vida alienígena (eram os deuses astronautas?). Mas jamais teria condições de saltar por sobre o mundo empírico e alcançar a existência de uma divindade genuinamente metafísica.


Conclusão

A clássica disputa acerca da principal questão filosófica envolve a pressuposição de que Deus existiria como um objeto mundano ontologicamente semelhante a rochas, estrelas, átomos, seres humanos e unicórnios, mesmo quando o adjetivo “espiritual” é empregado para qualificá-lo. Fiéis às pretensões absolutamente transempíricas do discurso metafísico, os positivistas lógicos mostraram que a controvérsia entre teístas e ateus é legítima apenas no âmbito das proposições derivadas da experiência, e que os enunciados teológicos metafísicos não seriam nem falsos nem verdadeiros, mas epistemologicamente assignificativos. A configuração do mundo empírico jamais seria utilizável para confirmar ou infirmar uma proposição metafísica, e o positivismo lógico, que formula a crítica da metafísica, não poderia se ocupar do estabelecimento da validade de uma proposição empírica. É claro que, nessa visão, os pseudoenunciados poderiam continuar a ser emocionalmente significativos, no caso da ocorrência de determinados estados psicológicos associados a palavras ou grupos de palavras desprovidos de sentido lógico.

No âmago do positivismo lógico reside o princípio da verificação formulado por Schlick e Carnap. Ele exige que se possa estabelecer o critério pelo qual a falsidade de uma proposição pode ser atestada. Mas nenhum teólogo (desde que profira um discurso autenticamente metafísico) seria capaz de conceber uma situação na qual a proposição “Deus existe” pudesse ser falsificada. É da natureza de um enunciado transempírico poder ser posto em harmonia com qualquer configuração empírica concebível.


Bibliografia

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Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Para uma enunciação do princípio da verificação, ver, por exemplo, Sentido e verificação, de Schlick, e A superação da metafísica pela análise lógica da linguagem, de Carnap.

(2) CARNAP, 1985, pp. 161-162.

(3) STRAUSS, 1860, pp. 12-13.

(4) Citemos o exemplo do Titã Cronos, o qual castra seu pai Urano com uma foice. Os respingos de sangue caem sobre a Terra (Gaia) e dão origem a novas divindades: as Fúrias, os Gigantes e as Ninfas.

(5) ARISTÓTELES, 2006, p. 68. É evidente que Tales não professa um materialismo stricto sensu, uma vez que atribui propriedades vitais e psíquicas à substância primordial (hilozoísmo e pampsiquismo). Para o materialismo em sentido estrito, tais propriedades são consideradas emergentes ou derivadas.

(6) LANGE, 1957, livro I, seção I, p. 4 (nota 1).

(7) WATERFELD, 2000, p. 36.

(8) BLOCH, 1995, p. 44.

(9) LANGE, 1957, livro I, seção I, p. 96 (grifo do autor).

(10) FRANGIOTTI, 1992, p. 74.

(11) LANGE, 1957, livro I, seção I, p. 290 (nota 1).

(12) Ibid., p. 290.

(13) “Muitos teólogos têm um conceito de Deus nitidamente empírico”. Cf. CARNAP, 1985, p. 162.

(14) De acordo com Strauss, “A totalidade das coisas finitas forma um vasto círculo, o qual, exceto pelo fato de que ele deve sua existência e suas leis a um poder superior, não sofre intrusões a partir de fora”. Cf. STRAUSS, 1860, p. 59. O “vasto círculo” de que fala Strauss é aquilo que Carnap chama de sistema do mundo empírico. Ainda segundo Strauss, “Deus age imediatamente sobre o mundo como um Todo, mas sobre cada parte individual somente por meio de sua ação sobre todas as outras partes, ou seja, por meio das leis da natureza”. Cf. STRAUSS, 1860, p. 61. É evidente que, nos termos utilizados por Carnap, Strauss defende um conceito externo ou global de divindade.

(15) CARNAP, 1985, p. 162.

(16)“Minha análise será baseada na afirmação de que Deus deve ser detectável por meios científicos simplesmente em virtude do fato de que ele supostamente desempenha um papel central na operação do Universo e nas vidas dos seres humanos”. Cf. STENGER, 2007, p. 13.

(17) Ibidem, pp. 125-126.

(18) EAGLETON, 2011, p. 104.

(19) TILLICH, 2005, p. 213.

(20) AT IX 140.

(21) As proposições analíticas ou tautológicas não contêm informações sobre o mundo. Se dizemos, por exemplo, que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180º, enunciamos uma proposição que é verdadeira independentemente da existência de triângulos na realidade. Tais proposições simplesmente explicitam aquilo que já está contido numa definição. Portanto, no que diz respeito às verdades lógico-matemáticas, os positivistas lógicos não são empiristas à la Stuart Mill, o qual procurou derivá-las da experiência.

(22) CARNAP, 1985, p. 173.

(23) Ibid., p. 168 (grifos do autor).

(24) Ibid., p. 161 (grifo do autor).

(25) Ibid., p. 156 (grifo do autor).

(26) WITTGENSTEIN, 1995, p. 140 (grifos do autor).

(27) Ibid.

Um comentário:

  1. Olá, fiquei com duas duvidas:

    1. Diz-se comumente que Popper refutou ou superou o Positivismo Lógico, em especial o Verificacionismo. Como isso afeta a validade do texto?

    2. A Física trabalha com entidades abstratas que nao sao substancias ou corpos, por exemplo Entropia e Informação, que nao sao entidades metafisicas. Me parece que existe tambem um conceito teologico mais abstrato de Deus enquanto informação, ou Deus = Verbo = Palavra - Informação. Mas Informação nao é nem um corpo ou substancia (nao tem massa nem volume). Como fica a questao se conceituarmos Deus como entidade informacional?

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