Ressuscitando após quatro anos e meio! Hoje começamos uma nova iniciativa no blog: vamos publicar, a princípio semanalmente, reflexões mais curtas e mais leves compartilhadas por Giuliano Casagrande em suas redes sociais, especialmente o Facebook, e que julgamos dignas de também serem fixadas aqui! Queremos variar um pouco o conteúdo e não presentear o público apenas com suas produções mais densas, rigorosas e cheias de citações, mas também com “gatilhos para o pensamento”, que vamos chamar aqui de textos breves.
Nesses tempos de falta de conteúdo nas mídias digitais, mesmo esses parágrafos podem não parecer “breves” o suficiente, mas a contribuição de Giuliano para levantar o debate entre seus contatos constitui tamanho diferencial que mereceria mais divulgação! Encorajamos a entrada em nosso grupo do Facebook, para quem ainda tem aí uma conta, no qual as reflexões também aparecem e você pode entrar diretamente em contato com ele. Porém, também pedimos a divulgação exatamente desta publicação em suas redes e entre seus amigos, a fim de espalhar cada vez mais o materialismo filosófico!

PRÉ-SOCRÁTICOS
Fico admirado com a pobreza e o enviesamento das historiografias tradicionais do período pré-socrático. Tudo já inicia de modo torto, o estudante virginal é exposto a tolices grosseiras, e poucos, por meio de esforços pessoais obstinados, conseguem elevar-se acima da mediocridade.
De nada adianta abordar a seco os fragmentos pré-socráticos, nem mesmo a doxografia oficial. Isso equivale a apresentar a aspirantes a paleontólogos alguns fósseis eminentemente ambíguos, os quais desafiam as classificações propostas por especialistas, e pedir aos noviços que emitam opiniões... Que mérito haveria nessa ingênua abordagem a seco? Tenho para mim que uma interpretação adequada do período pré-socrático (ou, de resto, de qualquer outro) exige o cultivo prévio de amplas e reiteradas incursões pelo mundo da cultura e das ciências.
O religioso grego anteriormente aos naturalistas milésios explicava o mundo por meio das ações imediatas de uma multidão de deuses. A noção fundamental a ser destacada aqui é a de “ação imediata”. Os deuses faziam tudo imediatamente, ou seja, sem intermediários. O raio, o terremoto, a doença, a boa colheita: ações imediatamente provocadas por seres pessoais sobre-humanos. O mundo, para o religioso grego tradicional, é um conglomerado de ações divinas.
A novidade milésia, já gestada no teatro grego (recriação artificial do mundo), consistiu na interposição de uma realidade intermediária entre os deuses e a fenomenologia do mundo humano: um conjunto de leis naturais. Para Tales, a Terra flutua sobre as águas como um barco; os terremotos são o movimento das águas que agitam a Terra.
Eu considero, no entanto, que uma das expressões mais eloquentes da nova tendência intelectual é uma explicação atribuída ao pré-socrático Anaxágoras de Clazômenas. Plutarco (1) recorda que, no tempo de Péricles, o nascimento de um carneiro unicórnio provocou comoção e foi interpretado como uma profecia sobre o destino político da cidade. Acreditava-se que os deuses comunicavam-se por meio de nascimentos monstruosos e forneciam oráculos aos homens.
De acordo com Plutarco, o cético Anaxágoras teria tomado de um cutelo e dissecado o crânio do animal, descobrindo que a causa do suposto prodígio era um desenvolvimento anormal do cérebro (de acordo com a crença da época, os chifres de um animal eram secreções da matéria encefálica). No caso, o cérebro do carneiro unicórnio estava reduzido ao tamanho de um ovo e comprimido contra a parede frontal do crânio.
O gesto de Anaxágoras é revolucionário. Não se trata de avaliar a justeza de seu parecer científico, mas o significado geral de sua decisão de procurar a etiologia do fenômeno nos recessos do animal.
Para contemplar o significado desse gesto, julgo proveitoso analisarmos uma resposta dada por Berkeley (o filósofo do “esse est percipi”) a uma objeção de Samuel Johnson. Johnson observou, com muita perspicácia, que a existência de um sistema tão complexo de órgãos internos seria supérflua num sistema fenomenista. Por que, se a mente divina é a causa imediata dos fenômenos, uma vaca apresenta-se à percepção munida de um sem-número de peças acessórias e invisíveis? Na analogia com as partes internas de um relógio, uma caixa vazia não seria suficiente? (2)
Hoje, a tecnologia dos videogames confere um brilhantismo especial à objeção de Johnson: no jogo Mortal Kombat, alguém diria que o comportamento dos personagens deve algo à existência das vísceras que a todo momento são expostas? Que tolo imaginaria que os fenômenos do jogo são movidos por órgãos invisíveis? O jogo, afinal, não é apenas uma superfície sem recessos?
A resposta de Berkeley é tão brilhante quanto a objeção de Johnson: uma caixa vazia não seria suficiente para explicar o funcionamento de um relógio, a não ser que o relógio existisse na ausência de leis naturais.
Assim, podemos enxergar com clareza adicional a manobra cética atribuída a Anaxágoras. O interior do corpo do carneiro não foi feito para ser perscrutado e interpretado pelos mortais (até mesmo os áugures que fazem a leitura de entranhas julgam que a divindade escreve imediatamente nas entranhas). O sistema das intenções divinas pertence ao nível superficial e visível da epiderme dos seres.
Anaxágoras acessa, portanto, um domínio estranho às valorações humanas e à religião. Afirma Holmes em sua análise da história do carneiro: “Se os deuses incorporam valores humanos e excelência, esse mundo subterrâneo é inadequado às narrativas que dão sentido a nossas vidas.” (3)
O mundo subterrâneo é justamente o domínio das leis naturais. Entre a tela fenomênica e a ação divina, interpõe-se uma espessa camada ontológica. O mundo adquire uma profundidade inédita. O carneiro, um microcosmo, deixa de ser apenas pele e torna-se um sintoma de um mecanismo subjacente.
Notas (Clique pra voltar ao texto)
(1) Samuel Johnson expressou tal objeção da seguinte maneira: “Para muitos [...] é chocante pensar que não possa haver nada mais que uma mera representação em toda arte e complexidade que aparecem na estrutura (por exemplo) de um corpo humano, particularmente dos órgãos dos sentidos” (cf. Carta a George Berkeley, 10 de setembro de 1729. In: G. BERKELEY, Obras filosóficas, p. 361). De fato, uma rica estruturação visceral seria supérflua num mundo que se reduz a um complexo de fenômenos; porém, como bem notou Berkeley, o fluxo fenomênico é regulado por leis (cf. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, §§ 60-66. In: G. BERKELEY, Obras filosóficas). Berkeley pergunta: se Deus dirige os ponteiros do relógio para indicar as horas, “Por que uma caixa vazia não serviria do mesmo modo?” (cf. A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge, art. LX, p. 85. A indagação de Berkeley tem o condão de iluminar a anedota do carneiro de Anaxágoras. Se uma divindade utiliza a morfologia externa de um animal como instrumento de comunicação, o que poderia justificar a modificação do interior do crânio? Um cérebro intacto não seria suficiente?
(2) The Symptom and the Subject. The Emergence of the Physical Body in Ancient Greece, p. 85.
(3) PLUTARCO, Lives, cap. IX, p. 115.
Bibliografia
BERKELEY, G. A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge. Londres: Jacob Tonson, 1734.
______. Obras filosóficas. São Paulo: Unesp, 2010.
HOLMES, B. The Symptom and the Subject. The Emergence of the Physical Body in Ancient Greece. Princeton: Princeton University Press, 2010.
PLUTARCO. Lives. Londres: Thomas Tegg, 1828.
