Minha abordagem é puramente pragmática. Escolho o pragmatismo filosófico porque penso que a pretensão metafísica da razão é temerária. Ainda assim, não renuncio a uma ontologia anêmica, minimalista, e penso que a história do materialismo científico deve ser avaliada à luz da perspectiva filosófica que considero verdadeira.
Não julgo possível demonstrar a existência do mundo externo e nem me sinto desconfortável com a hipótese idealista. Permaneço, como Descartes, no terreno da imanência subjetiva, mas não creio que haja indícios conclusivos de que as ideias apontam para uma realidade transcendente. (1) Assim, à entrada de qualquer dissertação sobre uma ontologia materialista criteriosa, proponho um flerte desavergonhado com a hipótese idealista, com o único fito de mostrar que, em larga medida, a ontologia fundamental não afeta nossas conclusões sobre o materialismo.
No entanto, ainda que o mundo externo exista, sua essência permanece uma grande incógnita. A física quântica esfrangalhou impiedosamente nossas certezas mais diletas. Eu não compreendo, e não estou em má companhia, como possa haver um efeito sem causa; fico estarrecido ao refletir sobre o caráter ontológico de um gato que está vivo e morto ao mesmo tempo. (2) No mais belo experimento científico já construído, uma tela colocada diante de duas fendas registra uma fotografia daquilo que o mundo é na ausência de um medidor: uma nuvem etérea de probabilidades. A evidência está aí, ao alcance de toda pessoa inteligente. Não é pouca coisa uma fotografia que confirma, no mínimo, uma hipótese que se aproxima da de Berkeley (refiro-me à interpretação standard da mecânica quântica, chamada de “interpretação de Copenhague”). E a verdade é que a nova física não é necessária para mostrar que a infraestrutura do mundo é elusiva: o mero movimento de um corpo no espaço é algo profundamente enigmático.
O segredo de minha posição é o seguinte: a evolução materialista é um fato tão assente quanto o pode ser um fato que não é diretamente observado; a transformação do lobo na estonteante diversidade de raças caninas, um processo puramente mecânico, não é menos provável, dadas as evidências disponíveis, do que o movimento da Terra em torno do Sol. Assim, ainda que o mundo seja uma simulação de computador ou coisa que o valha, permanece sendo uma verdade que o resultado da simulação é indistinguível do resultado de um processo genuinamente evolutivo. No dizer de Dobzhansky,
Aqueles que decidem acreditar que Deus criou cada espécie biológica separadamente, no estado em que a conhecemos hoje, mas fê-la de maneira a nos guiar à conclusão de que ela é produto de desenvolvimento evolucionário, não são evidentemente acessíveis à argumentação. Tudo o que pode ser dito é que sua crença é uma blasfêmia implícita, pois imputa a Deus uma má-fé assustadora. (3)
Adquire sentido, assim, minha proposta de uma ontologia materialista anêmica. Não estou preocupado com a possibilidade de que o cenário do logro universal seja blasfemo em algum sentido, apenas noto que, independentemente de qual seja a essência das coisas, a biosfera terrestre é idêntica ao produto de um processo ininteligente. É o bastante para a justificação de uma ontologia anêmica.
O darwinismo é o fundamento científico da ontologia materialista que eu defendo. Ele é o parâmetro que, a meu ver, deve ser usado na avaliação do materialismo científico da Antiguidade. Nós temos uma filogenia científica materialista; não temos ainda uma cosmogonia científica completa, pois ignoramos a origem das leis fundamentais da física. Podem ser consideradas boas, portanto, as filogenias científicas que se comparam ao darwinismo.
Vejo com desgosto certo tipo de historiografia filosófica, obtuso e mortiço, que não dialoga com o estado da arte das pesquisas científicas. A desculpa de que o papel do historiador pode terminar numa boa exegese das ideias de antanho não funciona, pois até hoje não vimos sinal de que nosso conhecimento foi favorecido pela prática, na verdade preguiçosa, de insular o passado. Peço perdão, portanto, se, com a intenção de preparar um assado saboroso, eu tomo de uma faca e limpo o corpo da filosofia antiga sem muita reverência; e peço perdão se o pedaço de carne oferecido é irrisório. Lamentavelmente, os antigos não fundamentaram o materialismo científico de modo satisfatório. Lucrécio (96-55 a. C.), o ateu mais sofisticado da Antiguidade, morreu sem poder aderir ao ateísmo com base em razões cientificamente válidas. (Ele talvez seja autor de um bom argumento a priori em favor do ateísmo, mas não é minha pretensão analisar aqui argumentos a priori.)
Não devemos perder de vista que são duas as razões que justificam a importância da história da filosofia. O estudo das ideias do passado tem uma função psicológica e uma função lógica. A primeira é essencialmente fluida e imponderável, assumindo a forma das circunstâncias subjetivas particulares. Ela pode ser, por exemplo, heurística, inspirando boas ideias e fomentando a descoberta; ou, então, no caso que presentemente nos toca, a função psicológica pode ser dar respeitabilidade ao ateísmo, mostrando a antiguidade do ateísmo numa época em que os ateus são perseguidos e hostilizados (de fato, as coisas que remontam à Antiguidade costumam ser vistas com reverência). A função lógica, por sua vez, é avaliar racionalmente as ideias. Aliás, no domínio lógico, não é de pouca importância a verificação de que uma ideia não resiste ao exame racional; não é de pouca importância, assim, saber que um amplo segmento da história é um deserto de ideias válidas.
E com tais considerações, que até agora só obliquamente abordaram o materialismo científico da Antiguidade, nós contornamos um oceano de discussões ociosas, as quais, não obstante sua impertinência, são presença obrigatória em toda exposição escolar. Meio caminho está andado com a constatação de que a física contemporânea pulveriza o ontologismo dos materialistas que eu evitarei chamar de “pré-socráticos” (já que considero o termo preconceituoso e deformador), bem como o ontologismo da escola de Epicuro, da qual faz parte Lucrécio. O padrão de interferência que aparece diante das duas fendas é suficiente para revelar o infantilismo da água de Tales, do ar de Anaxímenes, dos quatro elementos de Empédocles e dos átomos de Lucrécio. Nós podemos dizer que, em certo sentido, átomos existem, ainda que o substrato último da realidade não seja constituído de átomos. No entanto, Lucrécio sequer provou a existência de átomos redutíveis.
Outra boa porção de caminho está trilhada com a constatação de que ainda não temos uma cosmogonia científica completa. É derribado, assim, um maço volumoso de teorias cosmogônicas. Lucrécio admitia, sem mais, a existência irredutível de leis da natureza, as quais regulavam o comportamento de átomos também irredutíveis. No entanto, o que sabemos sobre isso? Por que tais leis, e não outras? O substrato último da natureza é um mistério insondável.
É forçoso reconhecer que os materialistas antigos tiveram sucesso na explicação do estado atual do mundo. Os adeptos da religião grega tradicional, como vimos, julgavam que os fenômenos eram imediatamente produzidos por uma multidão de inteligências sobre-humanas. Tales (c. 624-547 a. C.) introduziu no pensamento ocidental a ideia de lei da natureza. Para ele, os terremotos ocorriam quando a Terra, que flutuava sobre o oceano como um barco, era abalada pelas ondas. (4) Evidentemente, a explicação expressa de Tales é falsa; porém, ela é apenas a ponta de um imenso iceberg noético. Não obstante a inadmissibilidade dos pormenores teóricos, Tales e os demais materialistas da Antiguidade conseguiram fundamentar com razões cientificamente válidas a redução materialista do estado presente do mundo. Ainda que os terremotos não sejam causados pelas ondas do mar, havia, no âmbito do materialismo antigo, boas razões científicas para a atribuição desses e de outros fenômenos a causas naturais inespecíficas. Em primeiro lugar, os materialistas antigos escoravam-se em analogias com fenômenos cuja explicação mecanicista é cediça: um barco, que pode ser um pedaço de madeira numa bacia, é movido pela agitação boçal da água. Em segundo lugar, podemos inferir que já na época de Tales a consciência dos fenômenos disteleológicos havia se tornado um componente da reflexão filosófica; não é improvável, com efeito, que um terremoto que atinge um local desabitado tenha justificado a crença de Tales; em síntese, trata-se de perceber que
O problema é que a explicação materialista do estado presente do mundo não é suficiente para a edificação de uma ontologia materialista. Todos nós sabemos que a admissão da existência de leis da natureza não é estranha aos teístas. A coisa torna-se mais perigosa e interessante, é claro, quando o modo de explicação mecanicista avança sobre o terreno da cosmogonia. Porém, como já tive ocasião de dizer, a origem das leis fundamentais da física permanece obscura. Resta-nos analisar, portanto, o campo das filogenias materialistas.
A história do materialismo científico não é bonita. Ela está mais próxima da música dodecafônica do que de uma sinfonia de Beethoven. Nela impera a deformidade, a carência, a tortura, o desacerto. Nela encontramos a canhestrice de Meslier, os argumentos a priori de Holbach, os voos especulativos de Büchner, a fé de Lenin. Alguns fragmentos de boa ciência a serviço de conclusões aventurosas. Nela encontramos também uma filogenia que, antes de Darwin, serviu de tábua de salvação para os inimigos da religião.
Empédocles (c. 490-430 a. C.) propôs uma teoria não evolutiva da origem das espécies. Apesar disso, ele concebeu um mecanismo explicativo que se tornou uma peça fundamental da biologia evolutiva moderna. Na Notícia histórica acrescentada ao início de A origem das espécies, Darwin reconhece que a ideia de seleção natural já fazia parte do pensamento antigo, e um trecho da Física de Aristóteles é transcrito como prova. (6) Darwin, no entanto, comete um equívoco logo na primeira página de sua Notícia histórica, atribuindo a formulação e a defesa do princípio da seleção natural ao próprio Aristóteles.
Vejamos como Aristóteles descreve a teoria empedocliana da seleção natural:
No domínio em que absolutamente tudo tivesse sucedido por concomitância como se tivesse vindo a ser em vista de algo, as coisas teriam-se [sic] conservado na medida em que se teriam constituído de maneira apropriada por espontaneidade, mas teriam perecido e pereceriam todas as coisas que não teriam vindo a ser desse modo, como Empédocles menciona os bovinos de face humana. (7)
A teoria de Empédocles reaparece no poema Sobre a natureza das coisas, de Lucrécio. Nas palavras do epicurista romano,
Foi nessa altura [no início] que a Terra tentou criar numerosos monstros de estranho aspecto e membros, por exemplo, o andrógino, intermediário entre os dois sexos [...] e os seres que não tinham pés ou que não tinham mãos, e também os que não tinham boca e eram mudos e os que se encontravam cegos e sem face e os que tinham os membros inteiramente presos ao corpo e não podiam fazer coisa alguma, nem andar nem evitar o mal nem apanhar aquilo que seria útil. (8)
Lucrécio prossegue e afirma que as formas de vida inviáveis foram posteriormente eliminadas pela seleção natural:
A ideia básica dessa teoria é simples: na infinitude espacial e temporal do Universo, infinitos arranjos atômicos são ensaiados de modo inteiramente casual. Em virtude das leis da probabilidade, alguns arranjos são inevitavelmente organismos bem adaptados. Tudo se passa como se os átomos lucrecianos fossem as letras do alfabeto, e como se, em meio a uma profusão de letras reunidas ao acaso, viesse a lume uma página de Homero.
Por intermédio de Lucrécio, a filogenia de Empédocles teve uma carreira filosófica das mais profícuas. Na modernidade, ela foi primeiramente retomada por Descartes, e, depois de dinamizada pelo apelo psicológico da cosmogonia cartesiana, por filósofos como La Mettrie, Diderot e Hume. Atualmente, ela é considerada uma boa explicação da origem da vida e do conjunto de fatores cósmicos e geofísicos que fazem da Terra um planeta habitável. Na vastidão do espaço e do tempo, milagrosa seria uma loteria cósmica que não desse origem a moléculas autorreplicadoras e a planetas semelhantes à Terra.
O que ocorre, porém, é que a teoria de Empédocles é inadequada para explicar a origem das espécies que compõem nossa biosfera. A organização taxonômica observada na Terra não poderia ser atribuída a um processo em que os organismos são criados de maneira independente. É esdrúxula e insustentável a hipótese de que as homologias e os órgãos vestigiais foram gerados por eventos não relacionados. Eu até poderia admitir que uma loteria cósmica fosse capaz de dar origem a um animal semelhante a uma baleia; porém, o que dizer de uma baleia que reproduz, de modo deformado, as características de mamíferos terrestres que habitaram o mesmo planeta que ela habita? Assim, ciente da deficiência da filogenia de Empédocles, creio que Richard Dawkins está coberto de razão ao sustentar que “só depois de Darwin é possível ser um ateu intelectualmente satisfeito”. (10)
Não me agrada pensar que o materialismo científico pré-darwiniano foi uma filosofia insubstancial, mas não há alternativa. Além disso, para piorar as coisas, o fato é que, de per se, o darwinismo não é capaz de fundamentar uma ontologia materialista completa. Mesmo com o sucesso do darwinismo como explicação científica, subsiste a possibilidade de que uma inteligência primordial serviu-se do jogo das causas secundárias para criar, de modo mediato, as espécies biológicas.
É neste ponto que o historiador percebe com particular agudeza a precariedade da história do materialismo científico. Contudo, não devemos desanimar. A solução consiste em debilitar a exigência ontológica do materialismo científico. A hipótese deísta permanece no horizonte, como um fantasma inextinguível, mas somos capazes de, por meio de uma versão potencializada do argumento do mal, ajuizar cientificamente sobre o caráter moral de uma divindade hipotética. Seja como for, o materialismo antigo não nos oferece uma filogenia cientificamente válida e nem os elementos teóricos suplementares que, acoplados a uma filogenia materialista, podem resultar numa versão potencializada do argumento do mal.
Bibliografia
ARISTÓTELES. Física I-II. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
BERKELEY, G. Obras filosóficas. São Paulo: Unesp, 2010.
DARWIN, C. The Origin of Species. Nova York: Signet Classic, 2003.
DAWKINS, R. O relojoeiro cego. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
DOBZHANSKY, T. O homem em evolução. São Paulo: Polígono: Editora da Universidade de São Paulo, 1968.
LUCRÉCIO. Da natureza. São Paulo: Abril, 1973.
SÊNECA. Natural Questions. Chicago: University of Chicago Press, 2010.
Notas (Clique pra voltar ao texto)
(1) Estou convencido de que uma meditação obstinada sobre moluscos, anfíbios e peixes transparentes pode dissolver a aparência patética que costuma recobrir o idealismo subjetivo; confesso que tive uma epifania quando certa vez contemplei, num aquário de um pet shop, um peixe-vidro (Parambassis ranga). O animal de cerca de seis centímetros exibia sem nenhum pudor suas entranhas, e até mesmo seu cérebro; ele era uma pura superfície fenomênica; ele esboroava, assim, a objeção mais pungente que já foi levantada contra o idealismo subjetivo. Samuel Johnson expressou tal objeção da seguinte maneira: “Para muitos [...] é chocante pensar que não possa haver nada mais que uma mera representação em toda arte e complexidade que aparecem na estrutura (por exemplo) de um corpo humano, particularmente dos órgãos dos sentidos” (cf. Carta a George Berkeley, 10 de setembro de 1729. In: G. BERKELEY, Obras filosóficas, p. 361). De fato, uma rica estruturação visceral seria supérflua num mundo que se reduz a um complexo de fenômenos; porém, como bem notou Berkeley, o fluxo fenomênico é regulado por leis (cf. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, parágrafos 60-66. In: G. BERKELEY, Obras filosóficas). A água aquecida não se converte em gelo, mas em vapor. De forma análoga, um peixe transparente não se exibiria de modo regular se fosse uma imagem desprovida de uma configuração pisciana. Ora, considerando-se que eu apreendo diretamente apenas um fluxo regulado de ideias, não deveria provocar escândalo a hipótese de que um fóssil nada mais é do que uma implicação fenomênica da cadeia causal que se apresenta na imediatez da minha consciência: uma implicação coetânea da árvore que presentemente ocupa minha atenção.
(2) O fenômeno do decaimento radioativo é objetivamente imprevisível. Tome dois átomos perfeitamente idênticos. Um decai num momento, o outro num outro momento, sem absolutamente nenhuma razão. Conecte material radioativo a um contador Geiger; conecte o contador a um martelo, e coloque um frasco de cianureto ao alcance do martelo. Ponha tudo dentro de uma caixa que deverá ser fechada e não esqueça de acrescentar um gato. Sem um dispositivo de medição, o decaimento do material radioativo dentro da caixa é uma incógnita objetiva, e uma incógnita objetiva é algo que não somos capazes de compreender, nem com esforço estrênuo; nós só compreendemos o que é uma incógnita subjetiva. Consequentemente, o gato no interior da caixa existe num estado indeterminado de vida e de morte. Abra a caixa depois de uma semana. Pode ser que você encontre um corpo já malcheiroso. No caso, o ato de medição não criou apenas o estado presente do mundo, criou também o passado. Ponha isso no seu cachimbo e fume. É assim, gostemos ou não.
(3) O homem em evolução, p. 7.
(4) SÊNECA, Natural Questions, 6.6.1.
(5) G. BERKELEY, Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, parágrafo 151, p. 161. In: Obras filosóficas.
(6) The Origin of Species, p. 17, nota 1.
(7) Física I-II, livro II, cap. 8, p. 57.
(10) O relojoeiro cego, p. 25.
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