A filosofia poderia avançar e adquirir um grau elevado de sofisticação, ainda que não substituísse os deuses tradicionais por objetos inanimados. (Devemos notar, de qualquer modo, que a substância originária dos milésios não era um corpo desprovido de sensações e de pensamentos; dentro dela havia, contudo, regiões governadas por princípios mecânicos, assim como, em nossos corpos, a formação de cálculos, calcificações e abscessos obedece à causalidade mecânica mais crassa.) A hipótese de Gaia, mais próxima de nossa percepção moderna, estabelece que o superorganismo divino é composto de órgãos: “À medida que Lovelock continuou a refinar Gaia através das décadas de 1970 e 1980, ele descreveu uma anatomia terrena em que certos órgãos (florestas tropicais, desertos e mares costeiros) tinham maior importância fisiológica do que outros”. (1)
É verdade que a filosofia pré-socrática é mais sofisticada do que a filosofia homérica, mas o que impediria que o aprumo científico fosse obtido com a conservação dos deuses tradicionais? O estudo da fisiologia divina pode ser, de fato, tão sofisticado e curioso quanto o desnudamento de processos mecânicos. Em Homero já encontramos algumas informações instigantes sobre o icor, um líquido que flui pelas veias dos deuses e procede do metabolismo de néctar e ambrosia. (2) Antes que se diga que as ideias de Homero carecem de sofisticação filosófica, é preciso lembrar que os epicuristas, mentes que se ataviavam com a excelência da cultura científica, meteram-se em desavergonhadas especulações sobre a fisiologia de uma tribo de deuses antropomórficos. De acordo com o epicurista Velleius, “Os deuses têm uma certa figura que nada tem de concreta, de sólida, de expressamente substancial, de protuberante; mas é pura, lisa e transparente”. (3) Ora, a exploração da fisiologia divina poderia abarcar até mesmo a evolução dos deuses. Eric Steinhart oferece o seguinte cenário: “Considere as deidades gregas. Elas faziam sexo e geravam bebês. Elas tinham descendentes com modificações. Uma vez que elas têm sangue divino (icor) em suas veias, elas podem ter genes divinos em seus genitais. As divindades pagãs podem evoluir”. (4)
Há diversos modos suplementares de se mostrar, lançando-se luzes sobre certas nuances inexplícitas, a proximidade entre a religião homérica e uma cosmovisão científica como a atual. Pitágoras dizia que os terremotos eram causados por reuniões de mortos no Hades (o mundo subterrâneo). (5) Trata-se de um aceno à crença homérica, na qual as almas dos mortos (sombras, vapores, simulacros, fluidos sutis desprovidos de consciência) percolavam através do solo e se depositavam em cavernas. Muito bem, por um lado, seria possível descrever a fisiologia das almas homéricas (assim como os epicuristas escreviam linhas confiantes sobre a fisiologia dos deuses); por outro lado, notamos a semelhança entre os vapores anímicos armazenados no Hades e as exalações inanimadas que, segundo Aristóteles, preenchiam cavidades subterrâneas e causavam terremotos. Transição suave entre conceitos. Além do mais, quando fala de reuniões de mortos no Hades, Pitágoras parece entender que os terremotos são um resultado não intencional das acumulações de almas. Estas, seres que, segundo Homero, carecem de consciência, agem sem pensar nas consequências de seus atos; ou, se se deseja imputar a Pitágoras uma concepção psicológica mais encorpada, não há nada que indique que as concentrações de mortos conscientes têm o objetivo de provocar terremotos. Tropel de espíritos, aglomeração de almas gasosas, ou simplesmente flatulência divina: se os deuses peidam ou emitem exalações de algum tipo, devemos sempre pensar que tais ações são intencionais? Registre-se que Aristófanes atribui ao personagem Estrepsíades a crença de que a chuva era “Zeus a mijar através de uma peneira”, (6) e a de que o trovão era similar a um peido: “[...] quando cago, produzo verdadeiros trovões, papapapax, justamente como essas nuvens”. (7) É interessante também o fato de que a proibição pitagórica de se ingerir feijões pode ter sido motivada pela crença de que os feijões, famosos por provocar flatulência ou ventos intestinais, abrigavam almas de mortos (tal era a opinião de Plínio sobre a proibição pitagórica). (8)
Vimos acima uma transição suave entre as almas gasosas de Pitágoras e as exalações subterrâneas de Aristóteles. O melhor meio de se enfrentar uma dificuldade teórica, por sinal, é um argumento gradualista (a extremidade de uma cunha penetra mais facilmente do que a parte grossa). Ora, muitos outros argumentos gradualistas podem facilitar o trânsito entre o mundo homérico e o mundo pré-socrático. Mencionarei mais um exemplo, desta vez uma peça proveniente da antiga China. Os antigos chineses sacrificavam animais aos deuses. Pediam chuvas e outras benesses. Ao mesmo tempo, acreditavam que as relações entre os homens e a natureza eram reguladas por outros princípios, os quais destoavam mais ou menos da crença nos deuses e nos espíritos. Examinando as ideias dispostas num contínuo, nós aos poucos chegaríamos a concepções que praticamente não se distinguem dos pronunciamentos da moderna ecologia.
Na antiga China, a música era usada para influenciar os seres sobrenaturais. (9) No entanto, também tinha a função de moralizar o reino animal:
Vários textos documentam famosos mestres da música cuja atuação podia afetar ou encantar os animais. Frequentemente a maestria musical exibida por esses indivíduos é apresentada por meio de uma analogia entre a técnica do artífice e a arte do governo bem-sucedido. As melodias produzidas pelo tocador de alaúde Hu Ba supostamente fizeram os peixes saírem dos lagos para ouvir; Bo Ya tocou a cítara tão bem que os cavalos olharam para ele e esqueceram a forragem. (10)
Eu menciono o exemplo da antiga China para mostrar a existência de uma transição suave entre os animais e as entidades da religião tradicional (deuses e espíritos). A música, um análogo dos sacrifícios religiosos, era dirigida a ambas as classes de seres. A influência sobre o reino animal, por sua vez, pode ser despojada dos elementos místicos e reduzir-se ao tipo de relação que ocorre em nosso mundo real. Ainda que a música não afete todos os animais (e nem produza os efeitos miraculosos relatados na literatura chinesa), é sabido que muitas espécies podem beneficiar-se do contato com alguns tipos de música. É verdade também que a música é apenas uma ínfima parte das relações que travamos com os animais. Nós somos organismos que se integram a ecossistemas complexos. Nossas ações reverberam sobre a natureza e desencadeiam efeitos estocásticos. Qual seria, assim, a diferença essencial entre nossa mentalidade científica e as crenças do religioso homérico?
Um crítico recalcitrante pode ainda insistir que o trato com animais e a enorme carga de processos estocásticos que caracteriza nosso mundo desenham-se sobre um fundo de rígidos nexos determinísticos; pode ainda insistir, consequentemente, que a religião homérica era essencialmente distinta da ciência pré-socrática. Quanto a mim, só posso responder de uma maneira: por mais que eu revire a questão, não consigo perceber a presença de uma distinção essencial. Eu deveria novamente dizer que um Isócrates concebia o comportamento divino como se se tratasse de um relógio? Eu deveria trazer à memória a lenda segundo a qual os habitantes de Königsberg (atual Kaliningrado) podiam ajustar os relógios de acordo com a rotina escrupulosamente regular de Immanuel Kant? Talvez eu pudesse acrescentar alguns fatos como os seguintes: a alternância entre dias e noites (a imagem clássica da regularidade natural) deixará de existir quando um Sol moribundo devorar a Terra; a órbita de Mercúrio é uma anomalia no âmbito das leis newtonianas (um lusus naturæ); a incidência de raios cósmicos pode provocar mutações biológicas absolutamente fortuitas; diversas pesquisas científicas procuram determinar se as orações intercessórias são eficazes.
Por fim, é preciso reconhecer que a ideia de moira diminui ainda mais a distância entre a religião homérica e os pré-socráticos (um último prego no caixão da tese da revolução milésia). O vocábulo grego moira (“quinhão”, “parte que cabe a cada um”) é geralmente traduzido como “fatalidade” ou “destino”. Quando personificado, o conceito adquire a forma da deusa Moira. A mim parece que estamos defronte a um campo de força que, tal como uma nuvem de eflúvios magnéticos, determina os destinos individuais: conforme uma passagem da Ilíada, “[...] o fado inflexível lhe fiou o destino à nascença [...]”. (11) Há também, ademais, uma ideia das mais interessantes, a de que nem mesmo os deuses podem escapar à moira: “Há um debate nos estudos homéricos sobre se Zeus é superior ao destino ou não e se o destino em Homero é equivalente à vontade de Zeus”. (12) Ora, a ideia de deuses submetidos a um controle superior e inflexível sugere uma ontologia determinística bastante enfática. Tudo se passa como se o fundo último do real fosse constituído de uma lei superior: uma meta-lei (meta-law), na terminologia do físico americano Lee Smolin. Smolin elabora um cenário que, com a exclusão das injeções pontuais de design inteligente (milagres), parece ser um símile da religião homérica. Com efeito, Smolin sustenta que as leis naturais não são imutáveis, mas evoluem por meio de um processo cósmico de seleção natural (as mutações, aliás, ocorrem no caos quântico dos buracos negros). O problema, no entanto, é que o processo evolutivo seria governado por uma meta-lei. (13)
Bibliografia
ARISTÓFANES. Clouds. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
CÍCERO. Of the Nature of the Gods. Oxford, D. A. Talboys, 1829.
GREGORY, A. The Presocratics and the Supernatural. Londres: Bloomsbury, 2013.
______. Early Greek Philosophies of Nature. Londres: Bloomsbury, 2020.
HOMERO. Ilíada. São Paulo: Penguin, 2013.
RIEDWEG, C. Pythagoras. Ithaca: Cornell Univerity Press, 2005.
SMOLIN, L. Time Reborn. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.
STERCKX, R. The Animal and the Daemon in Early China. Albany: State University of New York Press, 2002.
STEINHART, E. Believing in Dawkins. Nova York: Palgrave Macmillan, 2020.
THOMSON, J. The Wild and the Toxic. Chapel Hill: University of Carolina Press, 2019.
Notas (Clique pra voltar ao texto)
(1) THOMSON, The Wild and the Toxic, p. 99.
(3) CÍCERO, Of the Nature of the Gods, Livro I, p. 41.
(4) Believing in Dawkins, p. 129.
(5) GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 136.
(8) RIEDWEG, Pythagoras, p. 70-71.
(9) STERCKX, The Animal and the Daemon in Early China, p. 135.
(12) GREGORY, Early Greek Philosophies of Nature, p. 36.
(13) SMOLIN, Time Reborn, p. 242-243.

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