15/01/2012

Todos somos ateus


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A perseguição a heréticos e heterodoxos sempre esteve presente na história humana. No caso dos ateus (que não são heréticos - todo herético é um religioso), a perseguição também foi uma realidade. Qual ateu pôde declarar-se abertamente antes do século XIX? O Sistema da natureza, maior obra materialista do século XVIII, foi publicado sob pseudônimo...

O caso mais triste de perseguição a um ateu foi a morte do napolitano Lucilio Vanini, autodenominado Julius Caesar (1585-1619). Vanini desprezou Platão e se proclamou filho de Aristóteles. Trata-se do Aristóteles paduano, de Pomponazzi, incompatível com a providência divina e com a imortalidade da alma. Em seu Amphitheatrum aeternae providentiae (1615), mostrou-se partidário da religião católica, inimigo dos ateus, apologista de Moisés, defensor da existência de deus, da providência e da liberdade. Combateu as doutrinas averroístas sobre a eternidade do mundo, o intelecto, a providência e o monopsiquismo (doutrina que negava a imortalidade da alma individual). Um ano mais tarde, em sua obra De admirandis naturae reginae deaeque mortalium arcanis (1616), zombou de tudo o que aparentemente defendia. Confessou sua descrença em todas as religiões, exceto na natureza, que é deus (princípio do movimento); todas as outras religiões são invenções de soberanos para manter seus servos em obediência, e de sacerdotes para obter lucro; não crê na espiritualidade da alma e nem na imortalidade e declara que só crê nessas coisas porque a religião cristã o obriga (separação entre fé e razão).

Vanini foi queimado em Toulouse em 1619, sob a acusação de ateísmo.

Hoje conquistamos a liberdade de expressão, mas o ateísmo continua a ser uma posição filosófica de má reputação.

É tarefa da filosofia promover o esclarecimento. Que inversão terrível de perspectiva a filosofia nos proporciona quando lançamos as luzes da razão sobre a questão do ateísmo! Afinal, quem são os verdadeiros ateus?

Ateus são todos os teólogos físicos: os adeptos da prova físico-teológica. Fénélon afirmava que o espetáculo da natureza revelava a mão invisível de um artífice inteligente, o autor da ordem teleológica do universo. Isso é ateísmo nu e cru: a redução de deus (o ser infinito) a um elo da cadeia de causas e efeitos. O deus dos defensores do argumento do desígnio é uma entidade mundana, empírica, finita, imanente. O transcendente e o imanente são misturados de maneira indiscriminada. Apenas um ser imediato (interno ao sistema do mundo) poderia ser a causa imediata de efeitos imediatos. Um deus que se mistura aos assuntos mundanos (que é causa imediata de efeitos físicos) não é um deus transcendente, é um “vertebrado em estado gasoso” (Haeckel), ou seja, um objeto de idolatria.

Ateus são todos os cristãos: trata-se da crença em Cristo como homem-deus. Como uma parte do mundo empírico – Jesus, um homem – poderia ser um Deus? Isso é idolatria. As esferas da física e da metafísica são confundidas; como no caso da teologia física, deus é rebaixado a um objeto mundano. A lógica mais elementar é capaz de revelar o paralogismo ateísta que habita o coração da cristologia: Cristo não é Deus, é homem, pois A=A; Deus é Deus, e não homem, pois A=A. Como afirmou Paine, “o sistema da fé cristã me parece uma espécie de ateísmo; um tipo de negação religiosa de Deus. Ele professa a crença em um homem, em vez da crença em um Deus” (The age of reason, cap. XI).

Ateus são todos os que julgam possível falar da existência de Deus: apenas objetos empíricos podem existir: pedras, árvores, estrelas, mesas, seres humanos, fadas, etc. Sua existência pode ser constatada, ou seja, contraposta à não existência. É legítimo perguntar: há unicórnios vivendo em Marte? Mas a mentalidade popular atribui a Deus uma existência análoga à dos unicórnios, seres cuja existência faria diferença no mundo empírico. Ora, apenas objetos empíricos podem ter sua existência atestada. Assim, quem afirma ou nega a existência de Deus reduz a divindade a uma parte do mundo material.

Ateus são todos os teólogos metafísicos: uma realidade metafísica não poderia, em princípio, ser verificada; logo, sua existência não poderia ser contraposta à não existência. Uma entidade metafísica é um puro nada sujeito à eliminação pela navalha de Ockam. Imaginemos dois mundos: o primeiro, em que um Deus metafísico existe; o segundo, em que um Deus metafísico não existe. Eles são absolutamente idênticos. Se houvesse uma diferença, Deus seria um objeto empírico, ou seja, não seria uma realidade metafísica. Se os dois mundos são idênticos, Deus não é nada.

Conclusão: todos somos ateus.

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