01 novembro 2025

Os primeiros ateus

Nos textos anteriores vimos uma série de conceitos que podem ser transformados em slogans pedagógicos: haicais sintéticos como selos, pequenas estampas que congregam grandes ideias e auxiliam o entendimento (a criação de slogans é até mesmo um teste para avaliarmos nosso domínio conceitual). Alguns exemplos: miasmas são granadas de fragmentação; o ontologismo é um luxo supérfluo; lusus naturae são milagres sem teleologia. Agora pretendo introduzir mais três elementos essenciais, os conceitos de irrupção hesiódica, de filogênese lucreciana e de problema do mal. Os três, por seu turno, deverão dar origem a novos slogans. São as peças mais importantes para a edificação de um conceito adequado de ateísmo.

Vimos que Hesíodo não parece oferecer um materialismo verdadeiro (com efeito, ele teria consciência da dificuldade de se obter uma adaptação orgânica num esquema materialista?). Ainda assim, eu não poderia deixar de notar que sua teogonia contém uma engrenagem teórica extremamente sugestiva. De acordo com Hesíodo, os deuses são os criadores da humanidade (a criação da primeira mulher, Pandora, é descrita em detalhes). Os próprios deuses, porém, emergem pelo acaso. Gaia surge por geração espontânea; outros deuses evoluem; mas o caso de Afrodite é ainda mais eloquente: ao emergir de uma espuma ou de um pedaço de carne, a deusa do amor dá mostras de um tipo de processo que não conseguiríamos distinguir da gênese materialista.

Daí o conceito que introduzo: “irrupção hesiódica”. (O leitor atento perceberá que esse conceito é uma forma de aprofundar a crítica do ontologismo que abordamos no texto anterior.) Não se trata de modo algum de uma ideia inovadora ou exótica. Galileu fez uso da essência dessa ideia quando identificou em Júpiter um sistema solar em miniatura que ofuscava o brilho do sistema geocêntrico (quatro luas de Júpiter foram descobertas por Galileu); Darwin igualmente recorreu ao argumento hesiódico quando abriu A origem das espécies com um capítulo sobre as espécies domesticadas (formidável analogia entre o cediço e o oculto).

A meu ver, uma proposição atribuída a Pitágoras é um dos exemplos mais ilustrativos de irrupção hesiódica. Pitágoras teria dito que os terremotos são causados por aglomerações de almas no Hades, ou seja, que os terremotos são um efeito não intencional de causas inteligentes. (1) O fenômeno não corresponde exatamente a uma pirâmide de ginastas ou às flores de carne humana produzidas pelas beldades do nado sincronizado (coisas que não ocorrem sem um planejamento minucioso), mas às massas de corpos que se aglutinam espontaneamente em orgias (muito embora possa haver, aí também, um certo planejamento). Se os integrantes de uma orgia colossal fizessem a terra tremer, teríamos o direito de pensar que os corpos libidinosos tiveram a intenção de provocar uma catástrofe geológica? A vida mental de cada elemento seria tão irrelevante quanto os sonhos nutridos pelas partículas de um gás. É possível notar, inclusive, uma forte semelhança entre os vapores inteligentes que se acumulam no Hades pitagórico e as exalações inanimadas que, segundo Aristóteles, preenchiam as cavidades subterrâneas e provocavam terremotos. Conforme o lema da crítica do ontologismo, matéria é o que poreja como matéria.

Vou introduzir agora o conceito de filogênese lucreciana, o qual deve ser pensado em associação com o argumento hesiódico. Aquilo que eu chamo de “filogênese lucreciana”, na verdade, foi primeiramente proposto pelo pré-socrático Empédocles (c. 494 – c. 434 AEC). Eu recorro ao epicurista romano Lucrécio (c. 99 – 55 AEC) simplesmente porque, na Antiguidade, Lucrécio foi não apenas um proponente, mas um articulador magistral da teoria inventada por Empédocles. Eu poderia da mesma forma, se quisesse, fazer uso da caudalosa exposição de Cícero em Sobre a natureza dos deuses (rico armazém de noções epicuristas). Cícero, porém, não foi um defensor da ideia.

O caráter essencial da filogênese lucreciana não é difícil de ser apreendido. Imagine apenas que as almas de Pitágoras (ou as partículas conscientes de um gás hipotético) são letrinhas que flutuam em uma imensa sopa. Então imagine que a sopa, que pode muito bem ter uma extensão infinita, é agitada de maneira caótica. Em decorrência da lei estatística dos grandes números (a formulação é moderna, mas a intuição básica já fazia parte das ideias de Empédocles), poderemos assistir ao surgimento de palavras, frases e até páginas de Shakespeare – tudo misturado a uma quantidade absurda de agrupamentos sem sentido algum. O exemplo da sopa não é de Lucrécio, embora Cícero fale de peças com as letras do alfabeto, as quais deveriam, segundo a filogênese epicurista, formar os versos do poeta romano Quinto Ênio: “[...] se números incontáveis das vinte e uma letras do alfabeto, confeccionadas em ouro ou alguma outra substância, fossem agitados num recipiente e depois espalhados no solo, eles poderiam formar os Anais de Ênio [...]”. (2) Lucrécio, no entanto, propõe um processo análogo: há um período da história da Terra (talvez num oceano primitivo – a ideia, como bem o demonstram Tales e Anaximandro, não era estranha aos gregos) em que todas as combinações atômicas possíveis são ensaiadas. Em meio ao pandemônio de arranjos fortuitos, alguns organismos capazes de sobreviver e gerar descendentes vêm à luz.

Eu afirmei há pouco que somente a conjunção da filogênese lucreciana com o argumento hesiódico pode esclarecer a essência do ateísmo. Agora explicarei tal nexo. O que ocorre é que o processo lucreciano dá margem a várias objeções que se valem da existência de uma moldura ou de um substrato que serve de suporte para a filogênese. Na ausência de uma derivação exaustiva dos componentes cósmicos, os adversários da filogênese lucreciana (e de processos aparentados) não tardam em reparar que a admissão de um substrato irredutível retira do ateísmo sua força probatória. A irrupção casual, dizem, é apenas a ponta de um iceberg cósmico que pode ser constituído de uma deslumbrante organização teleológica. Eles não estão de todo errados.

Em Hesíodo, os deuses provenientes da matéria são os designers inteligentes da humanidade (tira-se com uma mão o que se põe com a outra); em Lucrécio, a explosão de espécies ocorre num substrato já composto de estruturas orgânicas e semiorgânicas (posição que podemos chamar de “organicismo”). Não é só o fato de que Lucrécio jamais duvida da existência de uma casta de seres divinos (organismos irredutíveis). A própria matéria já é em si mesma um estofo ricamente configurado. Observemos as formas dos átomos. Eles não são apenas bolinhas de aço. De acordo com Lucrécio, há átomos de variadas formas, inclusive ásperos e com aparência de velcro: “figuras mais enganchadas”. (3) Sem muito esforço, concebemos que há também cilindros, cubos, cones, elipsoides, meias-luas e até minúsculos ouriços-do-mar: átomos com “pequenos ângulos algo proeminentes”. (4) Tudo leva a crer que Lucrécio teve um punhado de areia de praia sob os olhos quando teorizou sobre a geometria atômica (penso que todos deveriam contemplar pelo menos uma vez a incrível diversidade apresentada pelos grãos de areia sob um microscópio ou uma lupa), pois, logo depois de versar sobre a disparidade dos grãos em geral, ele reflete sobre as conchas que encontramos no litoral: “Vemos que a espécie das conchas, em razão semelhante, tinge o regaço da praia [...]”. (5)

Ouriços e estrelas-do-mar... Que regra arbitrária poria limites à variação, uma vez que Lucrécio não deriva as formas atômicas de um princípio superior? Tenho para mim, de qualquer modo, que um ouriço-do-mar petrificado (um grão duro com formato de equinodermo) já seria anatomicamente um ser vivo ou, pelo menos, o esqueleto de um ser vivo. Daí minha conclusão, a de que alguns átomos concebidos por Lucrécio são como conchas, foraminíferos e radiolários petrificados. Eu pagaria para ver um lucreciano descontente provar que os átomos primitivos poderiam ter a forma de ouriços-do-mar, mas não de radiolários! Por que, afinal, deveríamos parar em um ponto qualquer do espaço lógico das geometrias possíveis? Alguma proibição ontológica impediria a existência de átomos em forma de ursinhos? Gummy Bears atômicos, pingentes e joias em ouro maciço... Miçangas, brincos e berloques... Oh, o ridículo de alguns defensores de Lucrécio! A complexidade do estofo fundamental seria permissível até certo ponto. Uma lei superior determinaria as formas dos átomos da seguinte maneira: “uma estrela é a figura com o máximo possível de complexidade”. “Hum”, diria tal lei, “este ouriço desvia-se um pouco demais da simplicidade cabível. Um objeto que parece um resíduo de torneamento mecânico é uma forma que posso aceitar. Mas um ouriço, uma bola com pontas, já ultrapassa o limite da complexidade tolerável”. Por que não postular logo de cara, então, a simplicidade (quase) absoluta do espaço vazio? Há algo mais simples que o nada? De modo algum poderíamos dizer: “porque os átomos são a limalha resultante de fricções ancestrais”. Não! Os átomos de Lucrécio são eternos. Eles não passaram a existir. Descartes, mais consciente, evita o problema ao sustentar que as partículas são oriundas da fragmentação e do desgaste de um imenso “bloco de mármore” originário (a semente cósmica). Daí sim podemos esperar que haja partículas sem grande complexidade estrutural (se bem que, vista de perto, a cosmologia cartesiana só faça o problema retroceder à questão das propriedades do bloco primordial – as armadilhas inesgotáveis do ontologismo!). Lucrécio, contudo, não dispõe desse luxo teórico. Ele age como se os átomos fossem o produto de colisões mecânicas (fagulhas, estilhaços e seixos polidos pela fricção recíproca), mas não pode conectar o estado atual dos átomos a um evento genético primitivo. Uma simples análise da palavra “átomo” já seria suficiente para excluir a possibilidade de uma origem mecânica dos constituintes fundamentais do Universo.

Os defensores da primariedade do simples agem de maneira desonesta. Se há uma lei que proíbe a existência de átomos demasiadamente complexos (o estofo primordial de Lucrécio, no entanto, já é caracterizado por uma complexidade desconcertante), caberia perguntarmos qual é a razão de ser dessa lei. A resposta mais plausível que surge no horizonte é uma frase seca e peremptória: “fato bruto”. No entanto, se os átomos simplesmente existem como um fato bruto e não derivam de uma razão superior, a pergunta que fizemos acima permanece sem uma resposta. Radiolários, ursinhos e cavalinhos poderiam igualmente ser um fato bruto. E nem mesmo outras propriedades do sistema cósmico de Lucrécio, como a dimensão reduzida e a pluralidade dos átomos, deveriam ser pensadas como dados tranquilamente irredutíveis. O Universo poderia ser, em vez de uma multidão de átomos em movimento no espaço vazio, um organismo descomunal.

Confesso sair um pouco atordoado dessa reflexão. Um debate com um defensor da simplicidade primordial poderia estender-se a perder de vista. A questão, no entanto, é uma advertência sobre a natureza labiríntica do ontologismo. Qualquer que seja a resposta, nós não precisamos de uma para entender o significado da filogênese lucreciana. Há, de fato, argumentos para todos os gostos. Caso minha comparação com fósseis de radiolários seja falha, nós temos os velhos deuses à nossa disposição. Lucrécio, como eu já disse, não negava a existência de deuses. Tais entidades, também constituídas de átomos e dotadas de forma humana, provavelmente não vieram a ser. São organismos irredutíveis. Não se poderia negar, assim, que o estofo primordial de Lucrécio é entremeado de alguns nódulos de complexidade orgânica. Consequentemente, não preciso de mais dados para mostrar a necessidade da filogênese lucreciana (associada ao argumento hesiódico) para a fundação do ateísmo.

Seria de grande ajuda imaginarmos uma sopa em que flutuam, além de letras, alguns seres humanos. Ou, o que dá no mesmo, uma sopa que é aquecida num sofisticado fogão. O argumento hesiódico é aquele nos permite abstrair da complexidade presente nas letras (os átomos), nas pessoas (os deuses) e no fogão (o estofo primordial). Mais uma vez: se as unidades básicas com que lidamos são letras, e as letras formam palavras em decorrência do acaso e da lei dos grandes números, a complexidade encarnada em cada letra individual passa a ser irrelevante.

Há alguns anos comecei a elaborar o argumento hesiódico. Foi a única maneira que encontrei para conciliar uma derivação genuinamente materialista com uma moldura de elementos teleológicos. À época eu procurava evitar duas objeções particularmente irritantes, tanto mais porque ineptas e sempre vazadas em um tom soberbo. Uma delas é a de que os atomistas antigos não eram ateus. A outra é a de que a ausência de uma cosmologia completa (a derivação exaustiva das leis da natureza) torna inviável a defesa do ateísmo. Durante meu percurso, fui fortalecido em minha convicção quando li o último capítulo de Outgrowing God (2019), um livro do biólogo Richard Dawkins. Num trecho que até hoje me comove, Dawkins argumenta que o presumível enigma da cosmologia fundamental é “canja” (doddle) quando comparado com a magnitude do materialismo darwiniano: “O problema que Darwin resolveu, a saber, o problema da maciça improbabilidade da vida, era o maior deles”. (6) Trata-se de um belo aceno ao modo como Galileu interpretou a descoberta das luas de Júpiter (um microcosmo hesiódico que torna irrelevante a existência de uma ordenação geocêntrica), bem como aos ensinamentos que Darwin extraiu das experiências de domesticação. Recentemente, tive a felicidade de saber que o prêmio Nobel Robert Laughlin, um físico da matéria condensada, defendeu uma versão do argumento hesiódico. De acordo com Laughlin, a busca pelos constituintes básicos da matéria (cordas, branas, loops ou quaisquer outros objetos infinitesimais) pode tranquilamente ser colocada entre parênteses. Nosso foco deve permanecer sobre a camada de fenômenos emergentes, e não sobre a investigação da vida íntima e secreta das partículas. Laughlin propõe, assim, uma forma de behaviorismo que, se aplicada à sismologia pitagórica, equivaleria à seguinte injunção: “não devemos procurar saber o que se passa na cabeça das almas que provocam terremotos”. Um dos conceitos cunhados por Laughlin, inclusive, talvez capture com mais clareza a essência de meu argumento do que uma alusão à redundância hesiódica: trata-se do conceito de “protetorado”. Para Laughlin, protetorados são regiões da natureza que se emancipam de suas bases ontológicas; mais especificamente, são estados da matéria que, em virtude do grande número de partículas envolvidas, apresentam um comportamento que não depende de detalhes microscópicos. Agrada-me sobretudo quando Laughlin declara que às vezes a camada de fenômenos emergentes rompe todos os vínculos com a microestrutura da matéria: “[...] o hélio-3 superfluido, metais de férmions pesados e cupratos supercondutores parecem ser sistemas em que todos os vestígios desse vínculo [com a microestrutura] desapareceram [...]”. (7) Seria difícil encontrarmos uma formulação mais perfeita do argumento hesiódico! O que importa aqui, com efeito, é realçar a relação dialética que se estabelece entre um substrato e um domínio emergente que rompe todos os liames com o substrato. Julgo que seguinte frase de Laughlin merece ser acrescentada, pois nela encontramos uma denúncia bastante incisiva das pretensões estéreis do ontologismo: “[a emergência] torna as leis mais fundamentais, quaisquer que elas sejam, irrelevantes, protegendo-nos de ser tiranizados por elas. Ela é a razão por que podemos viver sem entender os segredos últimos do Universo”. (8) De fato, a emergência hesiódica mostra que o ontologismo é irrelevante para a fundamentação do ateísmo científico. O que importa é como a matéria poreja, e não sua constituição. No caso da sismologia pitagórica (o exemplo que aprendemos a amar – ou odiar – durante a presente exposição), as almas inteligentes porejam como massas de matéria que causam trepidações.

Dois novos elementos foram introduzidos em nossa constelação conceitual; dois novos slogans, portanto, podem ser criados: a irrupção hesiódica torna irrelevante o substrato em que ela ocorre; a filogênese lucreciana reúne o acaso com a repetição de eventos (lei dos grandes números). Falta um elemento para que nossa constelação seja completa: o argumento do mal. Trata-se do argumento de que a existência de uma divindade bondosa e suficientemente capaz é incompatível com a existência de estados mundanos indesejáveis – particularmente, com os exemplos aterradores de sofrimento. A utilidade do argumento do mal na defesa do ateísmo é grande, pois a percepção dos males que infectam o mundo é muito mais fácil do que a percepção do argumento hesiódico. Um sinal inequívoco da obscuridade do hesiódico, com efeito, é o fato de que não raro os pensadores têm dificuldade para entender que a cosmologia moderna é uma refutação do teísmo. Eu não estaria errado, portanto, se dividisse o ateísmo em duas vertentes: a científica, baseada no argumento hesiódico, e a popular, baseada no argumento do mal. Eu não desejo, contudo, que o adjetivo “popular” seja entendido de maneira depreciativa. Minha intenção é apenas mostrar que o ateísmo não poderia ser refém de sutilezas cosmológicas que são obscuras até mesmo para especialistas.

Creio que, com base na presente exposição, o leitor tenha captado a essência da ruptura hesiódica. Ainda estão frescas em nossa memória as passagens sobre a irrelevância da vida íntima das partículas e sobre os agregados fortuitos que se formam numa sopa de letras cósmica. Sei, no entanto, das dificuldades melindrosas que surgem quando deparamos com declarações de teístas e de agnósticos sobre a cosmologia moderna. Não é fácil encaixar o argumento hesiódico nos problemas concretos levantados pelos religionistas (e também pelos ateus que não sabem manejar o raciocínio hesiódico). Ora, o que vale para a interpretação da cosmologia moderna vale também para a historiografia do ateísmo. Sem o esclarecimento prévio de uma série de questões metodológicas (e sem o exercício de aplicação dos conceitos em problemas concretos), a história do ateísmo é um segredo guardado a sete chaves.


Bibliografia

CÍCERO. The Nature of the Gods. Oxford: Oxford University Press, 1998.

DAWKINS, R. Outgrowing God. Nova York: Random House, 2019.

GREGORY, A. The Presocratics and the Supernatural. Londres: Bloomsbury, 2013.

LAUGHLIN, R. B. A Different Universe. Nova York: Basic Books, 2005.

LAUGHLIN, R. B. & PINES, D. The Theory of Everything. In: BEDAU, M. A. & HUMPHREYS, P. (ed.). Emergence. Cambridge: MIT Press, 2008.

LUCRÉCIO. Sobre a natureza das coisas. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 136.

(2) The Nature of the Gods, Livro II, p. 80.

(3) Sobre a natureza das coisas, Livro II, p. 115.

(4) Ibid., p. 117.

(5) Ibid., p. 113.

(6) Outgrowing God, p. 273.

(7) LAUGHLIN & PINES, The Theory of Everything, p. 264.

(8) A Different Universe, p. 8.



01 outubro 2025

O espírito da novidade milésia


Endereço curto: materialismo.net/milesia


Antes de mais nada, uma breve recapitulação seria bem-vinda. Vimos que na religião grega tradicional a atividade dos deuses muitas vezes ocorria de forma regular (“Se não chove, a causa são os cristãos”), e que, consequentemente, a novidade milésia não poderia consistir na proposição de leis naturais. Robert Price chega a falar em “regularidade semelhante à de um relógio” (1) quando descreve a alternância espiritual de Javé no livro de Juízes (uma observação perfeitamente aplicável ao mundo de Homero). Seria interessante trazer à memória a lenda segundo a qual os habitantes de Königsberg (atual Kaliningrado) podiam ajustar os relógios de acordo com a rotina escrupulosamente regular de Immanuel Kant. Porém, antes que se diga que o fato de Kant ser uma pessoa debilita a tese de que os deuses podiam agir como relógios, convém lembrar que o próprio Gregory argumenta que as divindades da filosofia grega (e não as da religião homérica) atuavam de modo regular: “[...] para Anaximandro tudo ocorre de acordo com leis naturais. Pouco importa assim se Anaximandro descreveu o apeiron como divino. Ele é parte da natureza e obedece a leis naturais, portanto não há nada de não natural nele”. (2)

Vimos que o conceito de moira é outra forma de estreitar a distância entre a filosofia homérica e a pré-socrática. Numa passagem que demonstra a origem pré-milésia da noção de lei natural, Cícero identifica a moira com o determinismo estoico: “Quanto respeito pode ser concedido a essa escola filosófica [o estoicismo], a qual, como um bando de velhas ignorantes, encara tudo o que ocorre como o curso do destino?”. (3) As velhas ignorantes, não há dúvida, representam a filosofia pré-milésia. Ademais, o aparecimento episódico de violações da moira (Zeus cogita em salvar da morte seu filho Sarpédon) não anula a consistência intelectual do conceito de lei; no filme Forrest Gump, o tenente Dan afirma que seu destino era morrer em combate, embora tal determinação tenha sido violada quando Forrest o salvou. Seria verdade que a esperança frustrada elimina do cérebro de Dan a compreensão do conceito de destino? Coisa igualmente absurda seria pensarmos que a anomalia da órbita de Mercúrio (precessão do periélio) destrói nos cientistas todas as reminiscências da física clássica.

Vimos também que uma consciência intuitiva do conceito de spandrel parece acompanhar necessariamente a compreensão da essência de uma lei natural. Os spandrels são efeitos colaterais que emergem da insensibilidade das leis. Quando uma mulher grega preenchia a vagina com um tampão de cera ou um (presumido) espermicida, ninguém imaginava que a lei que rege a ejaculação e o prazer sexual seria suspensa durante o coito. O líquido seminal jorra com ímpeto cego em presença do contraceptivo. No sexo anal, tampouco as leis táteis distinguem entre o revestimento acetinado do ânus e a textura da cavidade ordinária. E nem mesmo os obstinados espermatozoides deixam de nadar vigorosamente quando mergulham na quentura enganadora de um bolo fecal.

O conceito de spandrel é útil para explicar um aspecto central da religião homérica. O miasma (“nódoa”, “poluição”) era um campo de energia negativa que emanava dos indivíduos culpados de transgressões religiosas. O miasma do rei Édipo, por exemplo, era a causa da pestilência na cidade de Tebas. (Malária vem do italiano antigo mala aria, “ar ruim”.) Como uma nuvem malsã que se espalha cegamente, os miasmas atingiam a culpados e a inocentes de forma indiscriminada. Não devemos pensar num míssil teleguiado (um espermatozoide inteligente que distingue um colo uterino de uma massa fecal), mas numa granada de fragmentação e nas bombas incendiárias de napalm que eram lançadas nas selvas do Vietnã; não devemos pensar na excisão meticulosa de um tumor, mas nos efeitos colaterais da quimioterapia.

A ação dos miasmas é um exemplo perfeito de spandrel. Numa dinâmica de fluidos intuitiva, a contaminação pelos gases pestilentos obedece a uma lei, ou seja, a um esquema comportamental que carece de poder discriminatório. Tal é a razão por que Ésquilo, Eurípides, Xenofonte e Horácio (entre muitos outros) advertem que não deveríamos dividir uma embarcação com um homem impiedoso. Se os miasmas fossem semelhantes a mísseis teleguiados ou setas inteligentes, um ataque cardíaco pontual poderia substituir um naufrágio repleto de tristes vítimas colaterais. Conforme Oates, “[...] é evidente que a associação [com ímpios] deve ser evitada principalmente pelo temor de que a punição divina, que deve recair sobre o culpado, careça de discriminação e acabe por incluir o inocente”. (4)

Não é pouca coisa denunciar as modas historiográficas que privilegiam o conceito de lei natural e inflacionam a relevância da novidade milésia. Justifico assim o espaço dilatado que concedo ao tema, talvez contra o interesse dos que desejariam uma abordagem mais direta do ateísmo. Além de funcionar como um red herring que obscurece a verdadeira face do ateísmo, o apreço pela noção de lei natural é indicativo de uma tendência organicista e hilozoísta. A regularidade não interessa ao materialismo; o acaso, sim.

Qual seria, então, a essência da inovação milésia, assumindo-se que de fato houve uma mudança significativa? Qualquer erudito minimamente informado a quem fizéssemos a pergunta logo falaria de água, ar, leis, naturalismo, espírito científico e coisas similares. A reposta, como podemos ver, é vazia e expressa uma adesão a diretrizes filosóficas bastante questionáveis. Ainda assim, após rejeitar as hipóteses do racionalismo e do pendor nomológico, eu olho com certa simpatia para a alegação de que o cerne da novidade milésia é o fato de que a teleologia antropocêntrica foi substituída por uma perspectiva mais impessoal. Várias evidências fazem-nos acreditar que o pensador pré-milésio via o exército inteiro dos fenômenos particulares a girar em torno do homem. Do contrário, seria difícil compreender um juízo como o seguinte, veiculado por Aristófanes: “Se Zeus atinge os perjuros [com raios], por que ele nunca meteu Símon em chamas, e por que não Cleônimo, por que não Teoro, rematados perjuros? Em vez disso ele atinge seu próprio templo, atinge Súnion, promontório de Atenas, e carvalhos muito altos [...]”. (5) Ao mesmo tempo, minha inclinação a atribuir uma teleologia milimetricamente antropocêntrica à religião homérica encontra um sério obstáculo na teoria dos miasmas. Com efeito, não seria possível apontar uma diferença entre o comportamento dos miasmas e as ações da divindade gasosa de Anaxímenes (o ar é a arché). Os deuses manifestam-se como massas de matéria, eles tomam a forma de nuvens e de gases mefíticos. Nas palavras de Garrison, “A ‘nódoa’ de um indivíduo pode, o que normalmente acontece, extravasar sobre transeuntes inocentes e demais concidadãos, gerando a necessidade de um bode expiatório para que a sociedade possa purificar-se do poluente”. (6)

Os estoicos acreditavam na teoria das punições divinas. Para Crisipo, um terremoto às vezes tinha o propósito de controlar o crescimento populacional. (7) Ora, se os estoicos, pensadores bastante sofisticados, atribuíam um significado moral às convulsões da natureza, não seria descabida a tese de que os pré-socráticos defendiam crenças similares. Somente o intérprete mais inepto pensaria que a explicação que Tales dá aos terremotos deve ser encarada secamente, como o epítome de um naturalismo rotundo. A água de Tales, uma substância anímica, é provavelmente a causa de ações punitivas e de outras ocorrências dotadas de significado antropológico. Ela agita-se em pontos específicos e gera repercussões na terra firme (uma fenomenologia análoga à das ondas que sacodem navios no oceano). A comparação com os miasmas, portanto, não poderia ser mais legítima: assim como os tremores explicados por Tales, os miasmas propagam-se de modo mecânico a partir de um foco de irradiação. Não nos esqueçamos que os miasmas são semelhantes às emanações que brotam dos cadáveres e das fezes. Daí a correspondência entre os dois estilos de explicação: Tales fala do movimento da água e da terra; a religião grega tradicional, do movimento de gases malignos.

O cosmólogo Alan Guth repara que as teorias que partem do vácuo quântico não se sobressaem como investidas de um caráter ontológico especial: “[...] uma proposta em que o Universo surgiu do espaço vazio não é mais fundamental do que uma proposta em que o Universo foi gerado por um pedaço de borracha”. (8) Preciosa observação! Com base num raciocínio análogo, podemos perguntar até que ponto a hipótese da novidade milésia é verdadeira. Talvez tudo seja uma questão de grau: a religião homérica teria uma cota maior de teleologia antropocêntrica. No século 18, Bernardin de Saint-Pierre exagerou ao defender que as cores dos cães estão ajustadas às habitações humanas: “[...] eles são, normalmente, de duas cores opostas, uma clara e outra escura, para que, em qualquer lugar em que estejam na casa, eles possam ser percebidos”. (9) O estoico Balbus já havia expressado uma intuição parecida quando perguntou: “Que finalidade têm as ovelhas, além de vestir-nos com sua lã quando processada e tecida?”. (10) Paroxismo do pensamento teleológico, derrisão da ideia de desígnio! Ainda assim, é também verdade que a natureza real não está livre de seu quinhão de leis morais e teleologia antropocêntrica. O conatus (a tendência controlada pela divindade cardíaca de William Harvey) não permanece contraído nos limites do corpo humano. Antes, lança tentáculos em todas as direções e chega a penetrar o espaço profundo. Há uma estranha harmonia entre os organismos e a estrutura do cosmo. De acordo com a teoria do fine-tuning (a qual pode ser aceita cum grano salis), apenas uma combinação altamente específica de propriedades cósmicas é compatível com a existência de criaturas inteligentes.

O conatus ultrapassa a esfera do indivíduo e alcança as estrelas. Como observou Marx, “[...] a natureza passa a ser um dos órgãos de sua atividade [a do trabalhador], um órgão que ele anexa a seus próprios órgãos corpóreos, acrescentando estatura a si mesmo, apesar da Bíblia”. (11) Marx alude aqui à passagem de Mateus (“Quem de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um côvado à sua estatura?”) com o intuito de mostrar que os instrumentos de trabalho são extensões artificiais do corpo. (O homem: uma aranha no centro de uma teia que abrange o Universo.) No mesmo trecho, Marx discorre sobre as espécies domesticadas:

No período inicial da história humana, os animais domésticos, ou seja, os animais criados de acordo com um propósito, e que sofreram modificações por meio do trabalho, desempenham o papel principal como instrumentos de trabalho ao lado de pedras especialmente preparadas, madeira, ossos e conchas. (12)

O espetáculo da domesticação não poderia deixar de impressionar os espíritos agudos. Basta lembrarmos a extraordinária variedade de raças caninas, prova irrefutável do quiasma que se forma entre o corpo humano e o mundo circundante. Assim, a bem da verdade, Balbus não se engana ao dizer que as ovelhas foram criadas para o ser humano! Além disso, um ecossistema particular e a própria Terra podem ser considerados como conatus estendidos. Em Homero, a fumaça dos sacrifícios subia aos céus e excitava as narinas dos deuses; hoje, os gases resultantes da queima de combustíveis fósseis acumulam-se na atmosfera e ocasionam graves perturbações ecológicas.

Os historiadores, com a vista turva e o espírito atulhado de ideologias tácitas (os NOMA parecem dominar a paisagem intelectual, bem como uma simpatia pelo hilozoísmo), não costumam sequer notar a teoria dos miasmas; quando a notam, não tiram as conclusões devidas. A historiografia aceita como dogmática é aquela que estabelece uma clivagem entre a religião homérica e o naturalismo milésio. Os miasmas, contudo, impõem uma obsedante presença e espalham seus corpos radioativos sobre esse panorama conceitual. Eu creio poder afirmar, com efeito, que (às vezes) a religião homérica é mais cientifica, mais nomológica e (cúmulo da perversidade!) mais materialista do que o pensamento pré-socrático; mais materialista, pois os miasmas da medicina hipocrática são mais seletivos (inteligentes, teleguiados) do que os da religião tradicional, e a impessoalidade é o signo da matéria. Como explica Jouanna, os miasmas da escola de Hipócrates (pensador que pode ser incluído entre os pré-socráticos) atuam de acordo com um sistema de chaves e fechaduras bioquímicas, ainda que os detalhes microscópicos sejam muito diferentes dos que hoje conhecemos:

A pestilência no texto hipocrático, causada por um elemento patogênico carregado pelo ar, afeta seletivamente os homens e as diferentes espécies de animais de acordo com as leis da compatibilidade e da incompatibilidade entre o elemento patogênico e a natureza de cada espécie, ao passo que a pestilência na tragédia, a qual é herdada da tradição épica (Homero, Hesíodo), é uma punição que é infligida indiscriminadamente a todos os tipos de seres vivos da comunidade a que a pessoa culpada pertence. (13)

Trata-se provavelmente de uma questão de grau. Em comparação com o pensamento milésio, a religião popular talvez contenha uma quantidade maior de teleologia antropocêntrica. Não é minha intenção, porém, determinar a quantidade precisa. Basta-me constatar que uma boa dose de fenômenos impessoais já fazia parte da mentalidade homérica. Nem seria preciso insistir numa análise dos miasmas (expressões paradigmáticas da imprecisão): até mesmo um raio pontual é constituído de uma parcela de elementos impessoais. Se um raio tivesse peças mecânicas, nós poderíamos repetir aquilo que Berkeley disse sobre os componentes internos de um relógio: uma caixa vazia (empty case) não serviria para marcar as horas. (14) Um raio, com efeito, tem a forma de um dardo, e um dardo é necessariamente um objeto extenso. Consequentemente, embora seja um projétil certeiro nas mãos de Zeus, um raio não poderia ser atomizado. Estamos diante de um pacote, de uma estrutura coesa, de uma Gestalt. Nem sequer uma bala de revólver (ponto material) poderia exercer seu ofício sem possuir um certo diâmetro.

Toda extensão é um conjunto de pontos. Uma linha, o objeto extenso mais simples, possui uma única dimensão e resulta do movimento de um ponto. (Produzimos um pacote de pontos quando espalhamos uma gotícula de tinta com a ponta do dedo. A própria gotícula, porém, já é um pacote com um diâmetro qualquer.) O nexo básico que devemos apreender é aquele que se estabelece entre um ponto e sua orla (o conjunto de pontos adjacentes). “Ontologia dos pacotes”, portanto, seria um nome apropriado para a teoria que descreve tal nexo. Quem deseja uma bebida é obrigado a adquirir o vasilhame que se agrega ao precioso líquido; a mulher amada não comparece ao ato sexual apenas como uma boneca de carne, mas como uma ânfora repleta de entranhas; a superfície lanígera das ovelhas é um biombo que recobre uma febricitante atividade orgânica; os testículos participam da liturgia, mas não penetram na tenda sagrada.

Assim como os miasmas, os raios que caem do céu são pacotes inteiriços. As partículas procedentes da divisão de um raio não conservariam as características do conjunto. Os fogos despachados por Zeus, em outras palavras, têm um propósito humanístico que não poderia ser realizado por fagulhas isoladas. A composição é o segredo. Ponto e orla formam uma unidade orgânica. Os raios são miasmas condensados que operam como as palavras de uma língua: pacotes de letras. Um projétil puntiforme, não é demais repetir, já é em si mesmo um agregado de pontos. Ora, então talvez não seja um exagero pensarmos que a ontologia dos pacotes é o instrumento de que precisamos para desvendar a essência de uma parte significativa do pensamento antigo (quiçá, para desvendar a própria essência da filosofia da natureza). Por muitos anos perambulei sem um rumo certo ao tentar compreender a relação entre uma presumível novidade milésia e o pensamento anterior. Demorei-me em três soluções traiçoeiras que à primeira vista pareciam muito plausíveis: o racionalismo, o pendor nomológico e a teleologia antropocêntrica. Hoje percebo que não haveria a menor possibilidade de penetração sem a posse da chave adequada. Tal como um basbaque que admira Os embaixadores de Hans Holbein, eu poderia especular eternamente sobre o indefinível objeto alongado que corta a porção inferior dessa tela. Por mais que eu perscrutasse os detalhes da figura, nenhuma solução apareceria. O problema é que eu estaria a seguir cegamente as regras do jogo e a contemplar a obra segundo as normas civilizadas da boa contemplação. Porém, se eu olho para a tela de forma oblíqua (um claro desrespeito à sensatez da observação frontal) ou tomo a liberdade de empregar um tubo oco de vidro, subitamente o objeto misterioso adquire o aspecto de um crânio perfeito. O nó górdio e o ovo de Colombo só entregam seus segredos aos que ousam infringir uma etiqueta silenciosa.

Um tubo oco de vidro: quanto a nós, onde buscaríamos um instrumento óptico? Só posso responder com base em minha experiência pessoal, já que uma multiplicidade de vias psicológicas conduz ao mesmo resultado objetivo. Os conceitos intercambiáveis de miasma, de spandrel e de ontologia dos pacotes, essenciais para a composição de um bom instrumento óptico, foram derivados, em meu caso particular, da leitura criativa de uma série de obras antigas e modernas. Destaco alguns exemplos: Descartes descobre a etiologia dos erros da natureza no fato de que os nervos estão dispostos como uma orla em torno da pineal; Malebranche elabora a teoria cartesiana e explica as malformações congênitas (ele próprio nasceu com uma espinha deformada) como efeitos colaterais ou subprodutos das leis da natureza (a ontologia dos pacotes em seu esplendor); o físico Brian Greene lança mão do conceito de package deal (“venda casada”, “oferta em pacote”) para descrever as características biológicas que, embora destituídas de valor funcional, aparecem agregadas a adaptações: como ele afirma, uma característica “pode não ter um valor adaptativo próprio, mas vir enfeixada a uma série de outras qualidades [...] que efetivamente foram selecionadas em razão de suas funções adaptativas”. (15) Descartes e Malebranche ficariam muito satisfeitos. O uso do termo “enfeixada” indica uma compreensão profunda da ontologia dos pacotes e a vigência no contexto científico atual de noções que remontam às Meditações de Descartes e até mesmo às considerações anatômicas do Timeu de Platão.


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Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) Theodicy: The Idiocy, p. 241.On Greek Religion, p. 4.

(2) The Presocratics and the Supernatural, p. 51. O espírito nomológico antigo sempre viu uma conexão entre o comportamento regular e a presença de faculdades psíquicas. Os estoicos, por exemplo, acreditavam que o percurso dos corpos celestes era causado pelo autocontrole racional. Assim como a arché milésia, as estrelas eram deuses. A origem dessa crença parece ter algo a ver com a observação de navios à distância, objetos que se assemelham a seres vivos autônomos. De acordo com Balbus, o interlocutor estoico do diálogo de Cícero, somos convencidos “pela observação distante do curso de um navio de que seu progresso é controlado pela razão e pela habilidade humana”. Cf. The Nature of the Gods, p. 78. Navios e automóveis abrigam pilotos – suas almas. É plausível, assim, que o passo intermediário que levou à astroteologia estoica seja a passagem de Homero sobre os navios imediatamente racionais dos feácios: “E diz-me qual é a tua terra, qual é a tua cidade, para que até lá as nossas naus te transportem, discernindo o percurso por si sós”. Cf. Odisseia, Canto VIII, p. 255.

(3) The Nature of the Gods, p. 22.

(4) The Influence of Simonides of Ceos Upon Horace, p. 34.

(5) Clouds, p. 37.

(6) Groaning Tears: Ethical & Dramatic Aspects of Suicide in Greek Tragedy, p. 11.

(7) The Philosophy of Chrysippus, p. 158.

(8) Apud A. VILENKIN, Many Worlds in One, p. 185.

(9) Œuvres, p. 494.

(10) CÍCERO, The Nature of the Gods, p. 104.

(11) Capital, p. 155.

(12) Ibid.

(13) Greek Medicine from Hippocrates to Galen, p. 125.

(14) A Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge, p. 227.

(15) Until the End of Time, p. 195.



18 junho 2025

“Aperçu” da filosofia pré-socrática

Vimos em artigos anteriores que a religião homérica já era filosófica e científica (aliás, em maior grau do que certas proposições pré-socráticas). Uma tese, quer-me parecer, aventurosa, apesar dos dados apresentados em meu favor. Mencionei o historiador Robert Parker, que não hesita em atribuir ao religioso homérico um pensamento não apenas racional (fundado no raciocínio lógico e na observação dos fenômenos), mas nomológico: “O argumento das recompensas da piedade é em princípio empírico: a preocupação dos deuses pela humanidade é confirmada pelo tratamento diferencial dado aos bons e aos maus”. (1) Parker, no entanto, não é o único. Eu poderia citar o teólogo Jaco Gericke, um defensor do caráter filosófico de algumas ideias descritas no Antigo Testamento. Embora Gericke fale dos antigos israelitas, a cosmovisão analisada por ele não é essencialmente distinta da dos gregos:

[...] todo o ponto dos “milagres” (sinais) e da revelação por meio de teofanias, audição, sonhos, adivinhação e da história pode ser encarado como pressupondo uma epistemologia evidencialista (veja a frequentemente repetida fórmula “para que saibais...”). Os filósofos da religião [pelo menos, alguns] negarão que se possa verificar a existência de Deus nesse sentido empírico, porém, de acordo com o Antigo Testamento, o próprio Javé assume que isso é possível. (2)

Vimos também que Andrew Gregory e outros intérpretes consideram que a noção de lei natural assinala o surgimento da filosofia pré-socrática. Um substrato que flutua de modo imprevisível, de acordo com Gregory, seria incompatível com uma filosofia da natureza que prescinde de interferências divinas. O absurdo da opinião de Gregory é autoexplicativo. Se eu perguntasse a qualquer pessoa minimamente informada se o caos quântico é incompatível com a ciência e com uma cosmovisão livre de interferências divinas, que resposta eu obteria? Além do mais, vimos que o filósofo pré-milésio estava longe de ignorar a noção de lei natural. O testemunho de um certo Nicolau (um siracusano que proferiu um discurso após a derrota ateniense na Guerra do Peloponeso) talvez seja interessante como uma prova adicional do que já foi dito: “Que a divindade deva envolver em calamidades inesperadas [considerando-se o enorme poderio bélico ateniense] aqueles que embarcam em uma guerra injusta, e não temperam sua posição elevada com humanidade, é realmente um grande bem”. (3)

Nicolau, é claro, não tem em mente o caos ao proferir tais palavras! Ora, se ele concebe uma regra que se aplica à sucessão dos fenômenos, cai por terra o já citado argumento de Gregory: “[...] não há nenhuma evidência de que haja alguma relação entre o nível da ira de Posídon e a quantidade ou a intensidade do tremor que ele provoca”. (4) Seria cabível até mesmo que pensássemos num esquema abstrato como o seguinte: os homens emitem partículas sinalizadoras (feromônios ou coisas semelhantes) que atingem os sentidos divinos; os deuses então reagem de maneiras condizentes com as partículas emitidas. Em nossa realidade, a indução de chuvas às vezes é feita por meio da queima de cloreto de sódio, com a consequente liberação de uma fumaça que sobe até as nuvens e interage com as gotículas de água.

Gregory não é fiel sequer às afirmações explícitas da filosofia que ele próprio define como inovadora e fundada na compreensão de leis naturais. Julgo oportuna a seguinte apreciação do historiador David Sedley sobre a geologia platônica: “A civilização [...], graças a regularidades celestes combinadas à indisciplina residual do estofo constituinte do mundo, tem um ciclo de vida comparável [...] aos ciclos de vida finitos dos organismos individuais”. (5) Combinação de regularidades e de processos caóticos: peço ao leitor que avalie a compatibilidade entre o domínio incondicional das leis defendido por Gregory e o cenário descrito por Sedley. Levando-se em conta abstratamente os dois traços apontados (o acaso e a necessidade), a geologia platônica corresponde perfeitamente ao nosso mundo real. Cabe explicar que, segundo Platão, a civilização era periodicamente destruída pelo extravasamento dos setores caóticos da matéria, como quando, em nosso mundo, a aleatoriedade quântica poreja e gera efeitos como o câncer e as mutações que alimentam a seleção natural.

Toda a plausibilidade da interpretação de Gregory deriva do fato de que muitas vezes as expectativas dos religiosos são frustradas. Porém, a frustração eventualmente experimentada por um religioso como o siracusano Nicolau é análoga à do físico que fica admirado ao observar que a órbita de Mercúrio não se encaixa no paradigma newtoniano. Evidentemente, seria esdrúxula a hipótese de que os físicos perplexos com a precessão de Mercúrio desconhecem o conceito de lei natural. Devemos notar, inclusive, que a fratura entre os dois paradigmas divergentes mimetiza no plano das ideias a fratura real entre uma regularidade fenomênica e a eclosão de um lusus naturæ. A descoberta da anomalia de Mercúrio (feita por Urbain Le Verrier em 1859) é um lusus naturæ que não se distingue praticamente do surgimento objetivo de uma anomalia com as mesmas características. Tudo se passa como se a curvatura do espaço-tempo (prevista pela relatividade de Einstein) rebentasse abruptamente no próprio tecido da realidade e provocasse o clinâmen da órbita de Mercúrio.

Um crítico recalcitrante poderia ainda insistir que a religião homérica é essencialmente distinta da filosofia pré-socrática. Quanto a mim, talvez eu pudesse acrescentar alguns fatos como os seguintes: a alternância entre dias e noites (a imagem clássica da regularidade natural) deixará de existir quando um Sol moribundo devorar a Terra; a incidência de raios cósmicos pode provocar mutações biológicas absolutamente fortuitas; diversas pesquisas científicas procuram determinar se as orações intercessórias são eficazes; na Antígona de Sófocles, Creonte tem por certo que os deuses jamais honrariam aqueles que cometem atos sacrílegos: “Exatamente quando você viu pela última vez os deuses a celebrar traidores? Inconcebível!”. (6) Os termos postos na boca de Creonte são fortes e indicam claramente a consciência de regularidades.

Por fim, é preciso reconhecer que a ideia de moira diminui ainda mais a distância entre a religião homérica e o universo pré-socrático (um último prego no caixão da tese da revolução milésia). O vocábulo grego moira (“quinhão”, “parte que cabe a cada um”) é geralmente traduzido como “destino”. Lemos na Odisseia: “Pois não é seu destino [de Ulisses] aqui perecer longe de quem ama; determinam os fados que ele reveja parentes e amigos e que regresse a seu alto palácio e à sua terra pátria”. (7) Muitos intérpretes, é verdade, fazem grande caso das passagens dos poemas homéricos em que a moira aparece como friável, como quando Zeus pondera se deveria salvar da morte seu filho Sarpédon; (8) a preocupação desses intérpretes, no entanto, é despropositada. Um processo como o desenvolvimento embrionário, embora possa ser empiricamente robusto (o diamante é o mineral mais duro da escala de Mohs: lembrete da tenacidade relativa dos entes naturais), não é em princípio infenso a perturbações.

Igualmente interessante é o fato de que Homero às vezes transmite a impressão de que nem mesmo os deuses podem escapar à moira: “Há um debate nos estudos homéricos sobre se Zeus é superior ao destino ou não e se o destino em Homero é equivalente à vontade de Zeus”. (9) Ora, a ideia de deuses submetidos a um controle superior e inflexível sugere uma ontologia determinística bastante enfática. Tudo se passa como se o fundo último do real fosse constituído de uma lei superior: uma meta-lei (meta-law), na terminologia do físico americano Lee Smolin. Smolin elabora um cenário que, com a exclusão das injeções pontuais de design inteligente (milagres), parece ser um símile da religião homérica. Com efeito, Smolin sustenta que as leis naturais não são imutáveis – elas evoluem por meio de um processo cósmico de seleção natural (as mutações, aliás, ocorrem no caos quântico dos buracos negros). O problema, no entanto, é que o processo evolutivo seria governado por uma meta-lei. (10)

De resto, o próprio Gregory admite que a moira homérica é uma das bases do conceito pré-socrático de lei natural:

A ideia da moira que regula a relação entre os deuses e os homens pode ser importante para as primeiras ideias de leis naturais. Eu concordaria fortemente com a alegação de que há ideias pré-milésias que ajudaram a levar à ideia de leis naturais – do contrário a ideia parece vir do nada e nós acabamos com um milagre grego que nada explica! (11)

A declaração de Gregory é instrutiva por pelo menos duas razões: em primeiro lugar, Gregory dá a entender que, para ele, a ordem (estrutura) é um traço irredutível da realidade. (A ordem, para usar um termo pré-socrático, é a arché: o princípio de tudo o que existe.) A rejeição dos milagres, com efeito, pode ser compreendida igualmente como uma rejeição dos lusus naturæ (não necessariamente; porém, quando levamos em conta outras declarações de Gregory, a interpretação que proponho adquire probabilidade (12) ). Agora, ao sustentar que a ordem é um traço cósmico nativo, Gregory é obrigado a aderir a alguma modalidade de teleologia imanente (o organicismo ou o hilozoísmo). A explicação é muito simples: não há ateísmo científico sem a dissolução da ordem no estrato cósmico primordial.

Em segundo lugar, Gregory contradiz a si mesmo. Ao mesmo tempo em que afirma a continuidade entre a religião homérica e o pensamento milésio, ele engrandece a diferença, como se, de algum modo misterioso, o conceito de moira já não contivesse em si uma compreensão do conceito de regularidade. Pior ainda, a cosmologia do pré-socrático Demócrito é mais casualista (ou irregular) do que a teologia homérica. Para Demócrito, o determinismo só é visível na escala cósmica do infinito. Nos quadrantes mais restritos (por exemplo, na porção do Universo que habitamos), o acaso é o fator que explica a gênese dos mundos e dos seres vivos.

Não é verdade, portanto, que os pré-socráticos emergem como os primeiros filósofos e sequer como os primeiros proponentes de leis naturais. Resta analisar os outros caracteres comumente atribuídos aos pré-socráticos. É impressionante a quantidade de preconceitos que viciam nossa compreensão desses filósofos (porém, algum segmento da história das ideias está livre de interpretações preconceituosas?). Muitos dizem que, com Sócrates, a tendência cosmológica do pensamento pré-socrático foi substituída por uma tendência ética – um erro crasso. Há corpulentas reflexões éticas nos pitagóricos e em Empédocles (purificação da alma por meio do vegetarianismo e da negação da violência); Demócrito e Protágoras desenvolveram teorias sobre a origem da cultura humana; o Fragmento de Sísifo (provavelmente da autoria de Crítias) é uma formidável reflexão sobre a origem moral da crença nos deuses. Ao mesmo tempo, Sócrates, Platão e Aristóteles elaboraram cosmologias cuja riqueza ofusca tudo o que sabemos sobre os pré-socráticos.

Outros adoram dizer que o monismo (Anaximandro e Anaxímenes sustentaram que tudo é modificação de uma matéria fundamental) é extremamente significativo no contexto pré-socrático, deixando de observar que o monismo é um traço contingente de qualquer essência que possa ser atribuída aos pensadores do período. Na verdade, o dualismo e o pluralismo deveriam ser vistos como igualmente constitutivos de uma hipotética essência pré-socrática: Anaxágoras dividiu a realidade em duas entidades discretas (inteligência e matéria), Empédocles defendeu a existência de seis substâncias irredutíveis (ar, água, terra, fogo, amor e ódio), Demócrito conservou os deuses antropomórficos da religião tradicional (é um requinte tolo a alegação de que tais deuses são feitos de átomos, sobretudo quando lembramos que Homero e Hesíodo jamais conceberam deuses incorpóreos): além dos átomos e do vazio, duas realidades irredutíveis, “Demócrito aparentemente admitiu, no âmbito das restrições de seu atomismo, um papel para seres divinos propensos a prejudicar e também beneficiar os homens”. (13) Nem mesmo a gênese hídrica de Tales, famoso cartão-postal do pensamento pré-socrático, é particularmente expressiva: em Homero encontramos a seguinte proposição: “Oceano, origem dos deuses”. (14)

De acordo com uma das interpretações mais comuns, os pré-socráticos forneceram os materiais brutos para que Platão e Aristóteles compusessem suas sínteses. O mobilismo desbragado de Heráclito (nada é constante) é combinado com o imobilismo de Parmênides (toda mudança é ilusória). Platão aparece com a teoria dos mundos sensível e inteligível; Aristóteles, com a doutrina da substância e a distinção entre ato e potência. Os pré-socráticos, logicamente, não passariam de uma escada que conduz às iluminações dos grandes mestres do Ocidente.

Considero que “ontologismo” seja um nome apropriado para essa tendência filosófica. Por “ontologismo” entendo a preocupação com o conhecimento da natureza íntima da realidade, conhecimento este que inclui uma resposta exaustiva ao problema da natureza da mente e de sua relação com o corpo. Ainda quando não recobre perfeitamente a teoria aristotélica da substância e conceitos análogos, o ontologismo comporta todas as interrogações sobre a constituição última das coisas. O físico Lee Smolin expressa da seguinte maneira a preocupação ontologista: “Às vezes eu penso sobre o que uma rocha é quando tento dormir, e conforto-me com a ideia de que deve haver, em algum lugar, uma resposta à pergunta sobre o que o Universo é”. (15)

No que me diz respeito, julgo que há modos mais profícuos de se edificar uma cosmovisão penetrante, ainda que, como Smolin, eu muitas vezes medite sobre a intimidade ontológica das rochas. Eu tenho em mente, é claro, a defesa do ateísmo científico. Para os interessados no tema, é necessário que a recusa do ontologismo apareça revestida de uma pertinência especial. O motivo é que a afirmação do ateísmo sequer é possível sem que o substrato cósmico primordial seja colocado entre parênteses. Questão sumamente técnica: a cosmogênese quântica vem envolta numa colcha de determinações ontológicas de dificílima elucidação. Decerto, a cosmogênese quântica ocorreu; entendemos em linhas gerais seu caráter. Porém, a cosmologia materialista emperra quando se dispõe a penetrar seus arredores (uma esfera surge ex nihilo no espaço – precisamos desvendar a natureza íntima do espaço para reconhecer que um surgimento ex nihilo é relevante para o ateísmo?). Não admira assim que os religionistas procurem tirar partido do ontologismo.

Felizmente, a interpretação ontologista da filosofia pré-socrática não é a única possível. Há material abundante fora da controvérsia sobre o mobilismo. Veremos no próximo texto que os primeiros ateus da tradição ocidental apresentam argumentos que ignoram as preocupações ontologistas. Ainda assim, seria possível dizer que o ateísmo científico não se configura como uma ontologia profunda? O paradoxo é apenas aparente. O que primeiro chamou minha atenção para a falsidade desse paradoxo foi a leitura de Schopenhauer. Com sua metafísica da vontade, Schopenhauer pretende pesquisar a constituição interna da própria superfície fenomênica, abstendo-se de buscar o conhecimento do cerne da realidade. Assim como a rica estrutura molecular de uma bolha de sabão, a película fenomênica tem uma espessura ontológica. Nas palavras de Schopenhauer, “[...] esta filosofia não presume explicar a existência do mundo a partir de seus fundamentos últimos. Ao contrário, ela atém-se aos fatos reais das experiências interna e externa”. (16)

Eu não defendo a filosofia de Schopenhauer. Mesmo que eu enxergue algumas semelhanças entre a vontade metafísica e o gene egoísta (aliás, a contraposição entre fenótipo e genótipo é um delicioso exemplo de metafísica empírica à la Schopenhauer), e mesmo que hoje o idealismo seja advogado por filósofos muito hábeis, eu retenho de Schopenhauer apenas um esquema abstrato que me permite conciliar a recusa do ontologismo com a formulação de uma metafísica penetrante.

George Novack: marxista, inepto, simplório. Um belo exemplo da historiografia que privilegia a interpretação ontologista dos pré-socráticos. Novack enumera os traços mais essenciais (mais abstratos ou genéricos) da substância e dá a tarefa por encerrada. “A água de Tales é uma substância corpórea, logo Tales é materialista”. Que simplicidade comovente! Segundo Novack, “Entre o deus Oceano como o pai primordial [referência a Homero] e a água, a coisa física, como a base da explicação [referência a Tales], está a mudança decisiva do animismo para o materialismo, da religião para a filosofia”. (17) Uma prova adicional da inépcia de Novack é o fato de que ele classifica como materialista a filogênese de Anaximandro, um processo que provavelmente foi inspirado na ontogênese dos insetos tricópteros. (18)

Novack, em suma, contenta-se em fundar o materialismo no conceito de corpo, como se a mera afirmação do corporeísmo bastasse para que um filósofo fosse considerado materialista. Ora, o litmus test para que possamos averiguar o materialismo de um filósofo parece ser o modo como ele concebe a cosmogênese e a filogênese. Pois bem, uma filogênese concebida segundo o modelo embriológico é uma boa opção materialista? O ridículo da interpretação de Novack é facilmente demonstrado por meio de um exame sumário da teologia estoica. Além de acreditarem num Deus corpóreo, os estoicos foram os maiores proponentes da teoria do design inteligente na Antiguidade (o mundo era estruturado por um vapor sutil e inteligente).

A água de Tales também tinha poderes psíquicos irredutíveis. Daniel Graham, um intérprete muito mais erudito e perspicaz do que Novack, explica:

A substância geradora é associada com a vitalidade e com a inteligência e, portanto, com a autonomia ou com o poder de governar; assim, o ilimitado de Anaximandro e o ar de Anaxímenes são dotados de entendimento. A substância geradora torna-se assim não somente a substância original, mas a substância que governa a ordem natural. (19)

Cumpre observar também que, de acordo com João Filopono (século 6 EC), Tales teria dito “que a providência estende-se aos extremos e nada escapa à sua percepção, nem mesmo a menor coisa”. (20) Dificilmente uma proposição materialista! E ainda que se queira pensar que Tales provavelmente concebeu um esquema evolucionista semelhante ao de Anaximandro, teríamos razão em supor que o materialismo é compatível com uma filogênese que imita o desenvolvimento embrionário?

Não importa a constituição íntima da matéria, e sim como ela poreja no mundo real. Se a Terra fosse um superorganismo, a vida seria uma propriedade essencial da realidade. No entanto, diante de um organismo qualquer, podemos olhar para uma de suas partes e observar uma calcificação patológica. Com alguma sorte, podemos observar a geração espontânea de vermes em seus intestinos (eu proponho aqui apenas uma ilustração pedagógica, e não uma adesão à teoria da geração espontânea). O depósito de cálcio e as gerações espontâneas, como parece evidente, representam a irrupção do caótico – o porejamento da matéria. A matéria que poreja na forma desses fenômenos é aquela que verdadeiramente merece o nome de “matéria”. Matéria marginal, tão periférica quanto a película fenomênica de Schopenhauer. Extravasamento que se desenha na orla da substância. Não obstante, ocorrência repleta de pertinência ontológica.

A ontologia marginal está para o ontologismo assim como uma calcificação está para a totalidade orgânica. Imagine que todos os átomos do Universo são seres pensantes. Imagine que cada átomo tem até mesmo uma vida mental bastante rica. Em seguida, pense no estado caótico das moléculas de um gás. A imagem ora descrita contém a essência de minha crítica ao ontologismo, bem como a essência de minha aposta numa ontologia marginal. A propósito, ainda que saibamos que o Universo emergiu do caos quântico, não conhecemos a intimidade dos momentos cósmicos mais recuados. A compreensão da época de Planck (o caos primordial) requer uma teoria, ainda indisponível, que combina a mecânica quântica com a teoria geral da relatividade.

Muito se falou da água de Tales, do ilimitado de Anaximandro, dos números de Pitágoras, dos átomos de Demócrito. Muito se falou dos modos como Platão e Aristóteles sintetizaram o mobilismo de Heráclito com o imobilismo de Parmênides. Ao mesmo tempo, personagens como Sófocles, Eurípides e Empédocles (não me refiro ao Empédocles ontologista, mas ao pai da teoria da seleção natural) viram-se relegados a um plano secundário. O ponto a ser ressaltado é justamente o fato de que tais pensadores desenvolveram um conceito de matéria às margens do ontologismo. Com base nas intuições exploradas por eles, depreendemos que a matéria é uma coisa extensa que opera mecanicamente. Sobretudo, depreendemos que a matéria não é responsável por nenhum ordenamento providencial do mundo. Trata-se de uma enumeração frugal de atributos (extensão e comportamento não providencial), o que significa que ignoramos uma série de atributos que, se justificados, comporiam uma teoria ontologista da matéria: aquilo que ocupa os pensamentos de Smolin antes dele adormecer.


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Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) On Greek Religion, p. 4.

(2) Can God Exist if Yahweh Doesn’t?, p. 151.

(3) DIODORUS SICULUS, The Persian Wars to the Fall of Athens, Livro 13, p. 181.

(4) Early Greek Philosophies of Nature, p. 50.

(5) Creationism and Its Critics in Antiquity, p. 119-120.

(6) Antigone, p. 73.

(7) HOMERO, Odisseia, Canto V, p. 198.

(8) Ilíada, Canto XVI, p. 474.

(9) GREGORY, Early Greek Philosophies of Nature, p. 36.

(10) SMOLIN, Time Reborn, p. 242-243.

(11) GREGORY, A. Presocratics and Nature. Destinatário: Giuliano Tommasini Casagrande. [S. l.], 25 fevereiro 2025. 1 mensagem eletrônica.

(12) A importância do acaso na história das ideias não deveria ser ignorada. Um exemplo: a redescoberta do materialismo lucreciano na modernidade dependeu de um evento genuinamente casual: a preservação de uma cópia de De rerum natura num mosteiro alemão e a subsequente recuperação do manuscrito por Poggio Bracciolini em 1417. No entanto, podemos corroborar de outro modo a antipatia de Gregory pelos lusus naturæ: vimos acima que Gregory não se sente confortável com as explicações genéticas baseadas em “acontecimentos singulares”. Cf. The Presocratics and the Supernatural, p. 63.

(13) SEDLEY, Creationism and Its Critics in Antiquity, p. 134.

(14) Ilíada, Canto XIV, p. 419.

(15) Time Reborn, p. 266.

(16) The World as Will and Representation. Volume II, p. 640.

(17) The Origins of Materialism, p. 87.

(18) Ibid.

(19) Explaining the Cosmos: The Ionian Tradition of Scientific Philosophy, p. 107.

(20) Apud SEDLEY, Creationism and Its Critics in Antiquity, p. 7, nota 21.



16 maio 2025

Os primórdios do pensamento filosófico ocidental

A história do ateísmo cientifico no Ocidente remonta à antiga Grécia (é um pleonasmo vicioso, contudo, falar-se em “ateísmo científico”). Houve ateísmo quando Eurípedes expôs a primeira formulação do argumento do mal que chegou ao nosso conhecimento; houve ateísmo quando Empédocles e os atomistas elaboraram a derivação materialista do mundo. Antes disso pode ter havido ateísmo, é claro, mas não conhecemos seus proponentes. Nada melhor, portanto, do que iniciar meu panorama histórico com um aperçu da religião grega tradicional. Ainda que nem todas as questões abordadas a seguir toquem diretamente o eixo temático deste panorama, a análise de uma porção de questões adjacentes é salutar ou mesmo imprescindível para a formação de uma imagem adequada da história do ateísmo científico.

Uma questão adjacente (dada a prevalência de algumas manias historiográficas, uma questão ousada) é a de se houve filosofia antes de Tales de Mileto. A análise da filosofia pré-milésia permite fortalecer a compreensão do ateísmo, pois abriga uma crítica dos NOMA (non-overlapping magisteria) de Stephen Jay Gould; permite colocar sob suspeita o red herring que consiste em exaltar o pendor nomológico milésio; permite ainda, entre outros benefícios, saber que o estabelecimento de um cânone ortodoxo de pensadores pré-socráticos trabalha em favor da agenda ontologista, a qual transforma a filosofia numa meditação sobre a substância (com a concomitante valorização de pensadores como Tomás de Aquino e Heidegger). O apreço por um cânone de pensadores pré-socráticos, aliás, além de refletir modismos escolares mesquinhos, impede o reconhecimento de que figuras como os dramaturgos gregos muitas vezes desenvolveram reflexões mais interessantes do que as dos pensadores considerados canônicos.

Todos conhecemos a narrativa que opõe a filosofia ao mito. Em primeiro lugar, é preciso dizer que a religião grega não é coextensiva ao mito, ou seja, que o mito agrega a ela uma série de informações suplementares sobre os deuses; em segundo lugar, que a religião grega é de jure independente do mito; em terceiro lugar, que o pensamento do religioso grego assentava no raciocínio lógico e na observação; em quarto lugar, que o mito não é a priori avesso à razão.

A religião grega popular estava de facto agregada ao mito, ainda que fosse de jure dissociável. O mito, afinal, compunha-se de informações que a prática piedosa podia ignorar. (Uma pergunta: o devoto católico depende da Suma teológica para exercer sua fé?) De acordo com Heródoto,

De onde cada deus surgiu, se todos eles sempre existiram, que forma eles tinham – tais coisas eram completamente ignoradas pelos gregos até anteontem, por assim dizer. Com efeito, Homero e Hesíodo foram os primeiros a compor teogonias, a dar aos deuses seus epítetos, a conceder a cada um seu cargo e sua ocupação, e a descrever suas formas. (1)

Antes desses poetas os cultos já eram praticados, sem dúvida, e os teólogos naturais, os oráculos e os videntes abriam uma fresta para a contemplação da natureza divina. Homero e Hesíodo, no entanto, enriqueceram o ideário religioso com um cabedal de informações adicionais – um conhecimento que permitiu o desnudamento efetivo da natureza das coisas e transformou a religião grega numa cosmovisão abrangente. As informações que os mitos trazem sobre a origem do mundo, com efeito, compõem aquilo que os pensadores de língua inglesa chamam de big picture: uma cosmovisão abrangente, uma visão totalitária da existência.

A teogonia de Hesíodo é uma cosmovisão materialista. A matéria, no caso, são o desejo sexual e a fisiologia reprodutiva dos deuses. De acordo com Stephen Scully, “O mais perto que o mito grego [de Hesíodo] chega de propor o design inteligente é com a figura de Eros, mas o desejo sexual e o destino biológico têm pouco a ver com a intenção consciente”. (2)

Os deuses hesiódicos originam-se de causas ininteligentes. Em alguns casos, o surgimento de um deus é aparentemente tão imotivado quanto um evento quântico: Gaia, uma das deusas primordiais, simplesmente brota do caos, uma realidade que, em Hesíodo, é definida como um grande espaço vazio (ainda não estamos na época de Ovídio, o poeta cosmogônico que concebeu o caos como uma matéria confusa). Os outros deuses, em sua maioria, provêm de relações sexuais análogas às humanas.

É de se notar que o caráter materialista da teogonia hesiódica não existiria sem o evolucionismo. Adstrita à partenogênese e a relações endogâmicas com seus próprios descendentes, Gaia tira de si mesma uma progenitura incrivelmente diversificada: de seu útero saem acidentes geográficos, corpos de água, monstros e criaturas marcadamente antropomórficas. Ainda assim, seria temerária a tese de que Hesíodo propôs um materialismo bona fide. Os pensadores da época, ao que parece, ignoravam o argumento do desígnio e a teoria do design inteligente; as adaptações orgânicas, para eles, não apareciam como um problema ou um explanandum. Como poderia, então, haver um materialismo substancial?

O máximo que consegui encontrar nos textos de Hesíodo foi uma passagem da história de Pandora em que Zeus confecciona uma característica engenhosa dos agentes morbosos (verdadeiras armas biológicas enviadas aos homens como punição): “[...] doenças para os homens, umas de dia, outras de noite, espontâneas, vagam, males aos homens levando em silêncio, pois tirou a voz o astuto Zeus”. (3) Ao contrário de uma cascavel, que anuncia sua chegada de modo ruidoso, as doenças fabricadas por Zeus aproximam-se em silêncio. Pode haver aí, de fato, uma compreensão implícita da engenhosidade das adaptações orgânicas, mas a evidência não me parece convincente. Agora, caso eu esteja errado, o estilo das explicações genéticas de Hesíodo torna-se enigmático. Afrodite brota da espuma que se desprende do pênis decepado de Urano: um pedaço de carne, portanto, engendra a deusa da beleza. O que deveríamos pensar da etiologia desse fenômeno? Se as adaptações orgânicas são realmente um explanandum interessante, poderíamos dizer que Hesíodo está ciente dos nexos físicos que comporiam um explanans adequado?

Podemos deixar de lado essa questão e perguntar, em vez disso, se a acusação normalmente dirigida aos mitos é verdadeira. É notória a narrativa inculcada nos alunos virginais já no primeiro dia de aula: mito e filosofia são maneiras antitéticas de explicar a realidade. O problema, no entanto, é que o mito não é a priori avesso à filosofia e à ciência. Alguma circunstância mundana poderia garantir que os mecanismos de transmissão cultural fossem fidedignos. Uma viagem no tempo seria uma circunstância ideal. Os cérebros poderiam ser filmadoras confiáveis e as pessoas poderiam ter uma aversão inata ao ato de mentir (a ideia de proferir uma mentira maliciosa seria tão repugnante quanto a ideia de ingerir querosene). Os deuses poderiam realizar no presente milagres tão ou mais impressionantes do que os eventos narrados pelos poetas (atribui-se ao deus Asclépio, por exemplo, a criação de um globo ocular onde antes havia apenas uma órbita vazia (4) ).

Tais hipóteses dizem respeito à questão epistemológica da origem dos mitos. Agora, com relação ao conteúdo propriamente dito dos mitos (e não mais à origem), digo que não há nada de a priori implausível na ideia de que alienígenas resultantes de um processo evolutivo decidem criar a humanidade. Não há nada de a priori implausível sequer na ideia de que a Terra e o cosmo são superorganismos. Os telescópios mais modernos captam uma estrutura colossal que recebe o nome de “pilares da criação”. Trata-se de um aglomerado de poeira e gás situado na nebulosa de Águia. Nas fotografias podemos ver três torres imponentes – uma delas poderia ser o pênis de Urano, caso ele não tivesse sido decepado. Ademais, há vários adeptos esclarecidos do candomblé e da umbanda, religiões que, a meu ver, não diferem de modo significativo da religião grega.

Com muita razão David Berlinski, depois de descrever a miríade de estranhezas (muitas delas em franca oposição a um materialismo ingênuo) que hoje integra a compreensão científica do mundo, declara: “Se amanhã os físicos determinassem que a física de partículas requer um acesso à ubiquidade do corpo de Cristo, tal doutrina seria prontamente declarada como um princípio físico e tratada de modo correspondente”. (5) Ora, o cardápio é realmente suntuoso. A imagem de mundo sancionada pela ciência atual é mais fantástica do que os sonhos mais loucos da mitologia. Temos até uma recente comprovação empírica da metempsicose (ou, não sei ao certo, da ressurreição da carne ou da sobrevivência da alma) – após a morte, algumas células transformam-se em organismos diferenciados e autônomos: “Pesquisadores descobriram [...] que células solitárias de pulmões humanos podem agrupar-se e dar origem a pequenos organismos multicelulares capazes de perambular pelos arredores”. (6) Os interessados devem procurar por biobots, xenobots e anthrobots.

No mundo real há leões-asiáticos, mas não leões-europeus (uma subespécie extinta); há metempsicose de certos elementos vitais, mas não da personalidade; há animais que podem regenerar membros amputados (salamandras, estrelas-do-mar e outros), mas não humanos capazes de fazê-lo; há ornitorrincos, mas não sereias; há gatos mortos-vivos, mas não gatos bioluminescentes; há partículas (e até mundos) que surgem espontaneamente do nada, mas não há, ao que tudo indica, monopolos magnéticos. As coisas mais absurdas e contrárias ao materialismo ingênuo existem; uma infinidade de variações minúsculas e prosaicas, não. É um ignorante, portanto, quem considera que o mito é a priori incompatível com a filosofia e com a ciência. É igualmente inepta a estirpe de fisicalistas que, a exemplo de Hobbes e Feuerbach, considera que uma entidade imaterial seria contraditória e filosoficamente inadmissível – de acordo com as propostas mais ousadas da gravitação quântica, o espaço-tempo emergiu de um estranhíssimo substrato imaterial.

O mais intrigante é que a vingança dos mitos ocorre da maneira mais monstruosa e insolente que se poderia imaginar. A teoria da inflação é o modelo cosmológico mais aceito atualmente. Uma de suas predições é a existência de um multiverso que se alastra indefinidamente no espaço. Ora, dado o número infinito de eventos acidentais na amplidão do multiverso, os físicos calculam que todas as configurações possíveis seriam realizadas algures.

O mito, contudo, era uma parte contingente da religião grega. Vimos a declaração de Heródoto sobre o caráter adventício das explicações mitológicas: “De onde cada deus surgiu, se todos eles sempre existiram, que forma eles tinham – tais coisas eram completamente ignoradas pelos gregos até anteontem, por assim dizer”. (7) Dissociada do mito, a religião grega limitava-se a explicar o estado presente do mundo: com base na observação e no raciocínio lógico, o teólogo desprovido das informações trazidas pelo mito podia inferir que os fenômenos do mundo atual eram operados por uma casta de seres sobre-humanos.

O que me deixa perplexo, no entanto, é a facilidade com que se costuma afirmar que a filosofia teve início com Tales. O religioso pré-milésio estabelecia correlações entre os fenômenos. Muitas vezes ele observava, por exemplo, que a prosperidade de um povo estava associada à prática judiciosa de sacrifícios. Os cientistas atuais não raciocinam de modo diferente. Hoje procura-se saber, entre outras coisas, se a religiosidade está associada à menor incidência de doenças cardíacas. Uma covardia desprezível, portanto, é a mania dos que insistem em enxergar num filosofema esfarrapado de Tales uma revolução filosófica. Por mais que eu procure ser caridoso, não consigo notar na gênese hídrica de Tales uma teoria particularmente sofisticada. Ora, o contrário parece ser verdadeiro: sofisticado é o raciocínio do religioso pré-milésio. Não é a gênese hídrica, afinal, que ainda perdura na ciência moderna.

Parece óbvio que os NOMA de Gould (os quais já existiam antes da formalização de Gould) são um dos princípios epistemológicos que orientam essa tendência historiográfica. Admitindo-se que a ciência e a religião consistem em domínios separados e imiscíveis, pretende-se (oh, mistério!) reduzir o potencial crítico da ciência e imunizar o núcleo duro da religião. Tal é o efeito almejado quando se defende a pureza das categorias – no caso em questão, a clivagem entre a filosofia e a religião grega tradicional. Não é por outro motivo que muitos hoje excluem o design inteligente da órbita da ciência.

Robert Parker, um dos maiores estudiosos atuais da religião grega, é um dos poucos que contrariam a narrativa dominante. A leitura de Parker traz-nos alívio e um pouco de ar puro; depois de estabelecer um paralelo entre a obra de William Paley (o célebre teólogo natural do início do século 19) e as evidências que sustentavam a crença de Sófocles e Píndaro (um dramaturgo e um poeta), Parker declara:

A maior evidência [...] da existência dos deuses é o fato de que a piedade funciona: a recompensa pela veneração dos deuses em conformidade com modos consagrados pela tradição é a prosperidade. O contrário é o fato de que a impiedade conduz ao desastre; e, embora o nexo entre a piedade e a prosperidade não seja frequentemente usado como prova da existência dos deuses, as aflições dos maus são realmente uma evidência bastante citada. (8)

Parker privilegia a correlação entre a prosperidade e a prática de sacrifícios, mas outros tipos de evidências podem ser mencionados. A visão de fantasmas, os sonhos proféticos e os milagres, aliás, constituem um corpo de evidências ainda mais portentoso do que as correlações analisadas por Parker. Eu considero particularmente significativo o fato de que Sexto Empírico estabelece um paralelo entre os eidola de Demócrito e a origem da crença nos deuses gregos: “Foi com base na aparição dessas coisas [eidola] que os antigos vieram a crer na existência de deuses”. (9) Os eidola são filmes atômicos emitidos pelos organismos; são como as luzes (fótons) provenientes de estrelas que desapareceram há milhões de anos, mas que continuam a impressionar nossos olhos. Como explica Gregory,

Eidolon tem um significado mais amplo do que “imagem” e pode significar “espectro” ou “fantasma”. Homero faz um uso significativo do termo neste sentido através da Ilíada e da Odisseia, ele emprega eidolon ao falar de fantasmas, espectros e visagens que aparecem aos heróis em vários estágios e desempenham uma parte importante na trama. (10)

Torna-se um pouco estranha, assim, a atitude dos que se opõem à hipótese de uma filosofia pré-milésia. Eles não se dão conta do embaraço em que caem, pois jamais pensariam em excluir Demócrito do grupo dos filósofos pré-socráticos. Seria igualmente bizarra a opinião dos que considerassem que as cosmologias milésias (Anaxímenes, por exemplo, sustentava que o mundo advinha da condensação do ar) são peças teóricas mais robustas do que as pesquisas sobre fantasmas e outros fenômenos parapsicológicos. Quem hoje propusesse uma cosmogonia hídrica seria prontamente ridicularizado (assim como são tratados os que acreditam numa Terra plana); a mediunidade, em contrapartida, ainda exige dos céticos a elaboração de críticas minimamente cuidadosas.

De acordo com Taylor, Demócrito preserva o nervo da religião tradicional:

A teologia de Demócrito [...] esforça-se para incorporar alguns dos traços mais característicos dos deuses da crença tradicional, notadamente seu antropomorfismo, poder, longevidade (mas não, crucialmente, imortalidade), interação pessoal com os homens e interesse (benéfico ou maléfico) na vida humana, à estrutura de uma teoria naturalista e materialista. Ela é, portanto, não obstante a audaciosa originalidade de sua explicação da natureza divina, notavelmente mais conservadora do que algumas de suas predecessoras (especialmente a teologia não antropomórfica de Xenófanes) [...].(11)

Os deuses hesiódicos tinham origem na matéria; os deuses democritianos, igualmente. Para Demócrito, o percurso era indireto: os homens formados por conjunções atômicas casuais emitiam eidola que, à maneira das assinaturas espectrográficas dos elementos químicos, conservavam resquícios dos organismos emissores. A atmosfera estava, por conseguinte, repleta de ectoplasmas, simulacros ou energias de organismos defuntos.

Taylor elabora a seguinte síntese da teoria de Demócrito:

De acordo com Cícero, Plutarco e Sexto, alguns desses eidola são nocivos e alguns são benéficos; Sexto acrescenta que eles predizem o futuro falando com os homens. O fraseado das passagens de Cícero e de Sexto deixa em aberto se o bem e o mal feitos aos homens são concebidos como meros efeitos naturais dos encontros com os eidola, ou como efeitos intencionalmente provocados por eles; Plutarco, por outro lado, claramente interpreta Demócrito como um defensor da última perspectiva, uma vez que, segundo Plutarco, Demócrito pensa que alguns eidola são maliciosos e faz orações [no sentido de rezar] para encontrar somente aqueles que são propícios [...].(12)

Imagine a atmosfera apinhada de deuses mortos (eidola inconscientes, peles abandonadas por cobras); seus corpos diáfanos vagueiam como os corpúsculos de células mortas que flutuam no humor vítreo dos olhos (as manchas e os filamentos que costumamos enxergar contra um céu azul); pense, se preferir, no oceano de radiações eletromagnéticas que preenche o espaço. A oração propicia o encontro com eidola benfazejos, pois a disposição mental cultivada pelo indivíduo vivo harmoniza-se com a assinatura psíquica armazenada em cada eidolon (talvez o estado mental produzido pela oração bloqueie a intromissão dos eidola malfazejos – como uma conexão de Wi-Fi); um problema psicológico como a depressão, ao que tudo indica, seria atribuído por Demócrito a uma classe específica de encostos. Seria exagero afirmar, então, que Demócrito conserva até mesmo o valor dos sacrifícios tradicionais? Se o preparo de uma oferenda pode servir de apoio para a criação de um estado mental favorável, vemos que Demócrito desponta como um legitimador de alguns dos aspectos mais repulsivos da religião grega.

Além do mais, que grave inconsistência haveria em se pensar que as fumaças dos sacrifícios contêm fragrâncias capazes de atrair ou afugentar algumas espécies de eidola? Diz a lenda, com efeito, que o aroma de pãezinhos recém-saídos do forno deu a Demócrito uma sobrevida de três dias: “Assim, aproximando-os das narinas, conseguiu sobreviver durante todos os dias da festa [das Tesmoforias]. Transcorridos os três dias festivos, ele expirou sem o mínimo sofrimento, com a idade de cento e nove anos [...]”. (13) A passagem, se não por outro motivo, mostra um filósofo atento às propriedades pneumatológicas dos eflúvios, o que nos permite pensar que as emanações resultantes da queima de oferendas poderiam interagir com os eidola dispersos no ar. Convém notar, ademais, a concepção de alguns pitagóricos, aparentada à de Demócrito. Aristóteles registra a seguinte opinião: “E o que dizem os pitagóricos parece seguir o mesmo raciocínio, pois alguns deles declararam que a alma são as poeiras no ar; outros, por sua vez, que ela é o que faz com que se movam”. (14)

Demócrito não teria dificuldade para admitir que os grãos de poeira dançantes (e os eidola espalhados pela atmosfera) são propelidos pelas colisões aleatórias de átomos de ar (ele defendia, com efeito, a gênese acidental dos seres vivos). Tratar-se-ia, no caso, de uma intuição do movimento browniano, o movimento aleatório de partículas suspensas num líquido ou num gás. Outra imagem sugestiva é a do vácuo quântico, uma porção de espaço em que fervilham partículas provenientes do nada (neste exato momento, de forma análoga, trilhões de fótons são emitidos espontaneamente pela lâmpada de minha sala). Demócrito acreditava, inclusive, que a Terra era ocasionalmente bombardeada por detritos malfazejos oriundos do grande cosmo: “Sabemos que Demócrito disse e escreveu que, quando mundos situados fora do nosso são destruídos, corpos alienígenas precipitam-se para cá e são frequentemente a fonte de pestes e outras ocorrências extraordinárias”. (15)

“Ocorrências extraordinárias”: Demócrito refere-se, evidentemente, a processos estocásticos. O extraordinário é o imprevisível (pelo menos, para as mentes incapazes de fazer uma leitura profunda dos mecanismos subjacentes – nem todos têm as prerrogativas epistêmicas do demônio de Laplace, a entidade imaginária capaz de obter informações completas sobre o estado físico das partículas). Daí a imagem de mundo que se sobressai das ideias supracitadas de Demócrito: de um lado, vivemos imersos num aquário repleto de restos mortais de deuses; de outro, sofremos os ataques imprevisíveis de detritos alienígenas. Agora a pergunta: seria forçar demasiadamente os limites da ontologia democritiana se admitíssemos que a aleatoriedade quântica (ou, para os mais castiços, o clinâmen epicurista) poreja de formas variadas em nosso mundo macroscópico? O seguinte cenário esboçado pelo fisiologista americano Dennis Trumble é bastante elucidativo:

[...] nossos corpos são constantemente bombardeados por radiação gama proveniente de fontes naturais como o rádio e o potássio-40 (geralmente encontrado em solos, águas, carnes e alimentos ricos em potássio), e você pode apostar sua vida no fato de que alguém em algum lugar do mundo desenvolverá câncer nos próximos minutos, ou horas no máximo, pela mera razão de que um átomo instável em algum lugar da Terra (ou fora dela) emitiu de forma aleatória um fóton altamente energético que simplesmente calhou de aterrissar no lugar errado no momento errado. (16)

As várias transições suaves expostas acima mostram que, além de ser filosófica e científica, a religião grega tradicional não foi violentamente negada pelo naturalismo pré-socrático. É plenamente concebível um cenário em que os eidola de Demócrito (compreendidos como deuses mortos ou películas inconscientes) apresentam um comportamento irregular e interagem de forma estocástica com os homens.


Bibliografia

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TRUMBLE, D. R. The Way of Science. Amherst: Prometheus, 2013.


Notas (Clique pra voltar ao texto)

(1) The History, Livro II, cap. 53, p. 60.

(2) Hesiod’s Theogony: From Near Eastern Creation Myths to Paradise Lost, p. 25.

(3) Trabalhos e dias, p. 37.

(4) COTTER, Miracles in Greco-Roman Antiquity, p. 17.

(5) The Devil’s Delusion, p. 54.

(6) NOBLE, P. A.; POZHITKOV, A. Biobots arise from the cells of dead organisms − pushing the boundaries of life, death and medicine. The Conversation, 12 set. 2024. Disponível nesta página.

(7) The History, Livro II, cap. 53, p. 60.

(8) On Greek Religion, p. 3.

(9) Apud TAYLOR, The Atomists: Leucippus and Democritus, p. 141.

(10) The Presocratics and the Supernatural, p. 195.

(11) The Atomists: Leucippus and Democritus, p. 215-216.

(12) Ibid. , p. 214.

(13) LAÊRTIOS, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 262.

(14) De anima, p. 50.

(15) PLUTARCO apud GREGORY, The Presocratics and the Supernatural, p. 187.

(16) The Way of Science, p. 12.